Honrar o Pinhal de Leiria

Mais uma vez os incêndios confirmam o triunfo do improviso sobre a programação.

A defesa da população, do território e dos bens contra os incêndios centrou-se, em primeira linha, no improviso, na mão heróica dos bombeiros e na entreajuda popular e expôs a insuficiência dos meios públicos financiados pelos impostos. Acresce que os incêndios encontraram condições favoráveis que incluem a descoordenação dos níveis de decisão e a deficiente cooperação entre os interesses individuais e colectivos na protecção e utilização da floresta. Nesta medida, os incêndios confrontam-nos com problemas persistentes em Portugal. Saliento os que respeitam ao grau de organização do Estado aferido pelos serviços prestados à população; à evasão fiscal que diminui as receitas para custear meios públicos, e aumenta a injustiça ligada ao uso desses meios em favor de quem não cumpre o dever social de os pagar; e à manutenção de regimes obsoletos de exploração da floresta, incluindo a negligência ligada à falta de prevenção ou utilização cívica dos bens públicos.

Porém, o problema principal criado pelos incêndios consiste no agravamento da desigualdade económica entre as várias regiões no contexto do país ou da UE, em especial o impacto nas condições de criação de riqueza, emprego e poder de compra. Por esta razão, a tragédia dos incêndios interpelam-nos a assegurar às populações afectadas condições de vida compatíveis com os valores prevalecentes no país. Hoje, sente-se que a desertificação do território, além de amparada por um bem-intencionado pacote de medidas desencadeando em rescaldo dos incêndios, depara-se com obstáculos que podem fazer com que não se transforme numa constante com prioridade, peso e longevidade na política interna. Os obstáculos mais relevantes são os seguintes. Um é que a questão da pobreza agregada em zonas geográficas não desperta a mesma sensibilização social do que o problema da pobreza individual. Outro é que a organização e defesa dos interesses dessas zonas é, em regra, incapaz de os transformar em actos com protecção nos telejornais ou nos recursos do Estado. E idos os incêndios... vai-se a atenção das televisões...

Historicamente, a migração de populações para o litoral está relacionada com as difíceis condições de criação de riqueza fora dessa zona, por causa da distância dos centros de decisão, duras condições geográficas e climatéricas, dimensão reduzida de mercado, poucas infra-estruturas públicas e qualificações técnicas dos recursos humanos. Hoje, a lógica da integração económica internacional e europeia encarniça este problema, já que as vantagens de localização para as empresas competitivas se tornam mais importantes com o aprofundamento da integração dos mercados nacionais e a vigência do euro. Acresce que por si só o funcionamento do mercado concorrencial não conduzirá a uma afectação de recursos compatível com os valores prevalecentes, razão pela qual foi criada a política europeia de coesão económica e social e outros meios, incluindo de cariz nacional. Neste contexto, a promoção de condições de criação de riqueza nas zonas afectadas pelos incêndios deve ser elevada a problema fulcral da economia nacional, pois o que está em causa é o desenvolvimento económico harmonioso do país e não apenas uma questão sectorial de agricultura, ambiente e ordem pública.

Nesta lógica, torna-se crucial insistir na questão do aparelho produtivo inerente à criação de riqueza no interior do país, em especial na opção pela diversificação de actividades e sofisticação da organização do trabalho, em especial os desafios da transformação digital, incluindo o do investimento intelectual em todos os cidadãos. É, por isso, fundamental não ficar só pela varanda dos livros brancos, comissões de elevado peso simbólico, reformas legislativas, assentes em indicadores técnico-científicos de bom ranking internacional ou opções assentes em custos extravagantes e subsequente falta de verbas, burocracia, negligência, corrupção ou outras razões.

Mais uma vez os incêndios confirmam o triunfo do improviso sobre a programação. Israel soube transformar as suas vulnerabilidades de insegurança em indústrias de defesa e segurança com excelente reputação mundial, tal como a Holanda soube transformar as mortíferas cheias, decorrentes da sua condição de território abaixo do nível do mar, numa oportunidade de afirmação da excelência da sua engenharia e de estratégias de ordenação do território, que hoje são sinónimo de prodígio em todo o mundo. É urgente empreender a reanimação da criação de riqueza nas zonas afectadas pelos incêndios no âmbito de uma estratégia pública duradoura baseada numa lógica de vasos comunicantes com a iniciativa privada e de entreajuda entre todo o território nacional. Privilegiando o desenvolvimento de expertise num cluster de incêndios florestais, desde a prevenção, combate e gestão do day after e de uma eficiente mobilização de recursos disponíveis, em particular das oportunidades do ciberespaço/cibersegurança, em especial da transformação digital. Conferindo máxima prioridade à dinamização de um quadro de realização social, baseado no equilíbrio entre solidariedade e o livre funcionamento das forças do mercado, tendo em vista a promoção do crescimento económico inclusivo e harmonioso, com primado do empreendedorismo e do desenvolvimento regional baseado numa dinâmica de internacionalização de actividades a partir de todo o território português. Dito de outro modo: honrar a alma do Pinhal de Leiria, lançando uma sementeira de criação de riqueza nas zonas afectadas pelos incêndios, plantando aos vindouros a mensagem que a actual geração soube fazer das fraquezas, força, em favor de um futuro digno e próspero para todos. Nosso e deles.

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