Actress tacteia na escuridão

Um ex-jogador de futebol que gostava de ser cientista e que hoje é um dos nomes centrais da electrónica mais aventureira, estará no MusicBox, em Lisboa, no dia 16, para apresentar o álbum AZD. “Gosto de tactear na escuridão”, diz-nos o inglês Darren Cunningham, ou seja Actress.

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Darren Cunningham, ou seja Actress, estará no MusicBox, em Lisboa, no dia 16, para apresentar o álbum AZD

O inglês Darren Cunningham, mais conhecido por Actress, não é um músico qualquer. Aliás nem é bem um músico, segundo o próprio. “Por conveniência considero-me músico”, diz-nos por Skype, “mas na maior parte do tempo parece-me que aquilo que faço está mais próximo da ciência que, no fim de contas, era o que gostava de fazer desde pequeno. Digo-o sem qualquer desprestígio para o que significa ser-se músico, mas porque sinto que o meu processo de criação acaba por ter pouco a ver com essa noção clássica de utilizar sons familiares. Quando estou a trabalhar em música o que vislumbro é mais dados, informação, electricidade, linguagem globalizada, circuitos, programação, bioquímica.”

Este músico-não-músico, que se estreou há uma década, tem tido um percurso evolutivo, lançando discos de forma paciente, situando-se sempre nessa terra incerta onde a electrónica contemporânea possui ligações tangenciais com a música de dança, por vezes desligando-se mesmo desta. No seu último e quinto álbum, AZD, lançado há alguns meses pela Ninja Tune, refina um processo explorado anteriormente, revelando a sua música como um processo inacabado. São vários os temas onde parecemos entrar a meio, na forma como o ritmo progride, ou pelo contrário é ocultado, até à próxima modelagem de uma ossatura sonora.

E se é assim em disco, em palco acaba por não ser muito diferente, como constatará quem se deslocar ao MusicBox, em Lisboa, na próxima quinta-feira, dia 16. E no entanto, apesar do ar inacabado, feito de fracções, de apontamentos de sons incompletos e da sujidade sonora, a sua música é fascinante, impondo uma nova organização difícil de catalogar. Claro que se podem detectar referências – do tecno dos primórdios à electrónica da editora Basic Channel, do ambientalismo fúnebre de Burial ao som pós-rave de Zomby, do hipnotismo de Theo Parrish aos labirintos de Aphex Twin – mas a maneira como demarca espaços e tempos é personalizada.

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Para ele o processo é tudo. Claro que deseja finalizar qualquer coisa que lhe faça sentido e que possa ser comunicado com inteligibilidade, mas o grande desafio, o gozo supremo, é o itinerário até chegar lá. “Nunca parto para a feitura de um álbum com uma ideia muito nítida em mente, mas a partir do momento em que, no procedimento, existe qualquer coisa que produz sentido, tudo passa a concorrer para alimentar esse desígnio.” No caso de AZD uma tonalidade parece ter tido um papel relevante. “Ao longo dos anos a minha música foi sendo descrita como acinzentada o que não é despropositado, mas agora desejava operar numa versão mais refinada dessa cor e cheguei ao cromado.” A epifania deu-se em Chicago.

“Era Inverno, o céu estava nebulado e estava a olhar para a peça Cloud gate de Anish Kapoor, com aquela cor tão singular, parecendo espelhar a cidade, e foi aí que o projecto para um novo disco começou a ganhar forma.” Para criar, de forma sonora, essa coloração começou por adquirir uma série de máquinas dos anos 1980 e 1990 caídas em desuso, bem como programas extremamente avançados, com o objectivo de gerar sons de uma forma que não é fácil de explicitar. “Gosto de explorar frequências e escalas inusitadas e esse tipo de coisas”, diz-nos de forma displicente, como se não desejasse esforçar-se em fazer-se compreender.

E talvez não valha a pena. Às tantas lança. “Construi um instrumento musical inteligente chamado AZD, que produz uma linguagem sintética e translúcida, mas na capa do disco está tudo dito.” Na capa do álbum temos uma fantástica foto do artista francês Mehdi Lacoste, uma representação de uma mão humana enlaçando uma réplica de mão cromada, numa afirmação metafórica sobre a anatomia do disco e da sua identidade transitória. É a primeira vez que na capa de um disco seu surge uma foto colorida. “O cromado funciona quase como um espelho, reflectindo tudo à sua volta”, afirma, argumentando que, na sua visão, é também um álbum que, nesse sentido, retracta as grandes metrópoles.

Como o seu próprio som, Darren Cunningham é intrigante. Não gosta muito de dar entrevistas. Foi ex-jogador de futebol profissional, tendo-se lesionado com gravidade quando representava o West Bromwich, o que o levou a desistir da actividade, mas poucos conhecem essa sua faceta. Percebe-se que quando está a operar em estúdio, e ele diz que está sempre a fazê-lo, desliga-se por completo do mundo exterior – “quando estou imerso nas minhas coisas não é fácil arrancarem-me de lá”, assegura – e na forma como conecta aquilo que interfere no seu processo criativo nem sempre é perceptível o que o seduz exactamente. Por outro lado ouvindo a sua música electrónica predominantemente instrumental não é crível que a maior parte consiga inscrever o que ele diz no que se ouve.

“Imagine isto”, começa por expor, como se nos solicitasse que nos concentrássemos no que vai dizer a seguir: “Um cientista pode estar a trabalhar na descoberta mais determinante para o futuro da humanidade, mas ainda assim o que o motivará é o processo e não o que ele vai, ou não, alcançar, porque nunca se sabe. Sinto o mesmo. Quando estou focado numa ideia tento aprofundá-la ao máximo. Tudo converge para ali. Essa permanência é o que me motiva. Gosto de tactear na escuridão. Mas o vazio nunca é vácuo. É um espaço em aberto que pode ser ocupado por memórias, imagens, projecções. Tudo isto pode parecer um pouco egoísta e, bem, até certo ponto é-o. Mas é essencial em qualquer caso.”

Existiu um tempo em que sempre que se evocava a música electrónica ela parecia prefigurar uma ideia de futuro. Agora que grande parte da música deve a sua condição ao digital continuará a fazer sentido utilizar o mesmo tipo de narrativa? “Não diria que a minha música é futurista, mas a forma como a trabalho é singular”, transmite ele, “e isso sim, talvez seja relevante”, dando como exemplos dois nomes que tiveram influência na gestação do corrente disco – o artista visual, graffiter e poeta afro-futurista do hip-hop, Rammellzee, e o artista dos anos 1950 James Hampton. Aliás a voz do primeiro aparece inscrita em CYN, um tema que evoca o hip-hop para se dissolver num manto pesaroso de sintetizadores.

“O que me seduz neles é a forma como conseguiram criar o seu próprio universo e fizeram-no sem alarido, quase no anonimato. Por certo que, por um lado, pagaram o preço de serem negros, principalmente James Hampton que quase não consta na história da arte, mas ao mesmo tempo ergueu uma vasta obra com generosidade, enquanto Rammellzee antecipou que muitas das coisas do nosso presente seriam uma mistura do mais ancestral com o mais moderno, evocando um futuro distante.”

De alguma forma é como se falando de outros discorresse sobre si próprio. E para além dos nomes evocados poderia ainda falar sobre o compositor do romantismo, o francês Fauré, ou da psicologia de Carl Jung, que também diz terem tido relevo na feitura do disco. Seja como for, uma década volvida sobre o lançamento do álbum Hazyville, foi desenvolvendo uma sonoridade própria, sem nunca prescindir de uma veia exploratória, tornando-se num dos nomes essenciais da electrónica actual. No mais recente registo constrói um cosmos paralelo de cores e formas híbridas, rodeado de ruído de estática, névoa ambiental ou alusões sinfónicas, como em Faure in chrome, resultante de uma colaboração com a London Contemporary Orchestra, mas também existem esguias e cristalinas pulsações tecno como em Blue window. Por vezes mais do que momentos reais, acedemos à memória difusa desses instantes, arrastados por cadências melancólicas, monocromatismos e texturas em suspenso.

Quando lhe perguntamos o que esperar da sua prestação em Lisboa na próxima semana é, como sempre, um pouco evasivo. “Vai depender se estarei ou não cansado”, começa por afirmar entre risos, mas depois acaba por ser mais concreto. “Em estúdio ou em palco gosto quando o corpo reage de uma forma um pouco letárgica. É por isso que trabalho horas a fio. Sei que haverá momentos em que me deixarei ir. Em palco não tenho pretensões em criar atmosferas de boa disposição. A minha relação com a música é intensa. Espero estar disponível para transmitir isso. Se assim for haverá sempre alguém do outro lado que também estará disposto a compreender-me. Acredito que a comunicação começa aí.”  

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