A prova do crime

Como se garante que um vídeo de uma testemunha de um crime é suficientemente credível para ser aceite em tribunal?

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Na semana em que a divulgação nas redes sociais de um vídeo de mais uma violenta agressão de um jovem às mãos dos seguranças do Urban Beach ditou o encerramento da discoteca lisboeta, é tentador pensar que a ubiquidade dos smartphones e o poder de difusão da Internet vieram pôr fim à ideia de crime sem castigo. A realidade, porém, é mais complexa. O vídeo em causa, e a consequente reacção da opinião pública, levou as autoridades a agirem. Mas será que essas mesmas imagens vão ser aceites como prova em tribunal? O tempo das redes sociais não é o tempo da justiça, tal como não é igual o grau de exigência na análise das provas. Daqui a uns anos conheceremos a conclusão deste caso.

Agora pensemos em casos bem mais graves onde se levantam dúvidas sobre vídeos e fotografias de atrocidades. Nas denúncias do uso de armas químicas contra crianças na Síria, onde o regime de Bashar al-Assad fala em encenação orquestrada pelos rebeldes. Nos vídeos de aldeias incendiadas na Birmânia, perante os quais o governo de Aung San Suu Kyi aponta o dedo à minoria rohingya (na fotografia que acompanha este artigo) enquanto esta (e boa parte dos observadores internacionais) denuncia acções de limpeza étnica. Ou ainda os últimos meses da longa guerra civil do Sri Lanka, em 2009, quando o exército cingalês terá executado milhares de rebeldes e de civis tâmiles. 

Em Novembro de 2010, Mark Ellis, actual director-executivo de uma associação internacional de advogados com sede em Londres, a International Bar Association (IBA), foi um dos peritos encarregues da análise de um vídeo de uma execução sumária durante este último conflito. As imagens protagonizaram uma reportagem do Channel 4 britânico que chocou a opinião pública mundial e motivou protestos do governo do Sri Lanka. Mas não puderam ser aceites em tribunal, uma vez que não era tecnicamente possível comprovar a sua veracidade. 

Esta experiência motivou a IBA a desenvolver uma ferramenta que promete eliminar dúvidas sobre imagens registadas por testemunhas de atrocidades. O projecto eyeWitness to Atrocities, cuja directora Wendy Betts leva à edição deste ano da Web Summit em Lisboa, ganha forma numa aplicação para o telemóvel que permite a uma potencial testemunha de um crime filmar um acontecimento e gravar o vídeo numa plataforma online, podendo depois apagar o filme do telemóvel por motivos de segurança. A aplicação móvel regista a data e o local exactos da filmagem, blindando os metadados e todo o ficheiro contra qualquer tipo de manipulação posterior. Para além de vídeos, o programa também regista e protege fotografias e ficheiros de som. O projecto tem um âmbito predominantemente internacional, focando-se numa primeira fase na denúncia de crimes de autoridades de regimes autoritários. 

A IBA defende que os dados recolhidos e protegidos pela aplicação conferem às provas validade suficiente para serem acolhidas em qualquer tribunal. A organização argumenta que esta é uma ferramenta igualmente útil para os jornalistas, frequentemente iludidos por vídeos falsos durante conflitos armados, atentados ou catástrofes naturais, que podem agora comprovar a origem de um ficheiro e, por outro lado, proteger e validar o trabalho que os próprios produzem em cenários de guerra. Na era das fake news, este pode ser um importante selo de garantia.

A rubrica Tecnologia encontra-se publicada no P2, caderno de domingo do PÚBLICO

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