Naufrágio do Roumania foi há 125 anos

Na madrugada de 28 de Outubro de 1892 o vapor inglês Roumania, que navegava de Liverpool para Bombaim, naufragou na Foz do Arelho. Dos 115 passageiros, só se salvaram oito. Durante semanas o navio foi saqueado e nem a tropa destacada para o local foi capaz de impedir actos de selvajaria.

O navio inglês naufragou no areal a sul da Foz do Arelho
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O navio inglês naufragou no areal a sul da Foz do Arelho Mario Lopes Pereira
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Imprevidência do comandante, mau tempo, distração do piloto, não avistamento dos faróis de Peniche e da Berlenga, ou uma conjugação de tudo isto. As causas do naufrágio permanecem desconhecidas. Só se sabe que o navio inglês se desviou 20 milhas da sua rota e naufragou no areal a sul da Foz do Arelho, numa zona onde hoje existem empreendimentos turísticos e campos de golfe, mas que à época eram descampados onde à noite não havia uma única luz. A maioria dos passageiros e tripulantes nem se deu conta que estava tão perto de terra firme.

Vestígios do Roumania não existem. O navio está assoreado a 200 metros da praia e dele já foi retirado tudo o que teria valor, apesar de se encontrar numa zona de forte rebentação onde o mergulho se torna difícil.

Mas do que foi o maior naufrágio da costa Oeste no século XIX dão testemunho as sepulturas existentes nos cemitérios da Serra do Bouro, Vau, Óbidos e Peniche, onde foram enterrados os cadáveres dos náufragos à medida que estes iam dando à costa numa extensão de perto de 50 quilómetros.

O relato dos oito sobreviventes — dois oficiais ingleses e seis tripulantes indianos — permitiu reconstituir o trágico acidente. O navio tinha apanhado um mar tempestuoso praticamente desde que saíra de Liverpool. Os seus passageiros — na sua maioria militares, funcionários do Império Britânico e seus familiares, e missionários — passaram praticamente toda a viagem nos camarotes ou no salão devido ao mau tempo. Alguns padeciam de enjoo.

Era o caso do capitão Hamilton, que viera de férias a Inglaterra, onde se casou, e regressava agora com a sua mulher para a Índia. Apesar de casados, os homens viajavam separados das mulheres e Hamilton partilhava uma cabine com o tenente Rooke, que viera tratar-se de um ferimento a Inglaterra e regressava agora ao seu regimento.

Hamilton passara o dia deitado e contou que o tenente Rooke acabara de chegar ao camarote para se deitar quando sentiram um solavanco e os motores deixaram de funcionar. Os dois homens dirigiram-se ao corredor onde havia mais passageiros assustados. Ao espreitarem para o convés viram que as ondas varriam o navio com grande violência. O jovem tenente diz que viu o comandante de pé, em pijama, na ponte, mas que no segundo seguinte uma onda o tinha arrastado (o seu corpo nunca seria encontrado).

Sem cintos de salvação

Assustados, os passageiros reúnem-se no salão, mas o pânico aumenta à medida que as ondas destroem o navio e as luzes se vão apagando até ficarem todos na mais repleta escuridão. O capitão Hamilton diz que procurou por cintos de salvação nas cabines, mas não os encontrou. Viria a saber-se depois que estes tinham sido retirados dos camarotes para permitir mais espaço às bagagens.

“A partir desse momento, o cenário tornou-se indescritível. Enquanto eu viver, serei incapaz de apagar da minha memória o horror daqueles momentos. Ondas enormes batiam nas paredes da cabina, e os gritos de agonia das mulheres e crianças soavam através da escuridão. Éramos atirados de um lado para o outro dentro das cabinas, incapazes de oferecer qualquer resistência ao poder das ondas. Então senti um golpe terrível na minha cabeça, e perdi os sentidos. Não me lembro de mais nada até que me encontrei a flutuar na água junto do navio do lado do mar.”

Hamilton teve o sangue frio suficiente para tirar as roupas e nadar nu até terra. Na verdade as ondas acabaram por empurrá-lo para o areal porque o navio estava muito perto da praia.

Algo idêntico se passou com o tenente Rooke que conta que foi arrastado por uma onda, mas que em poucos segundos sentiu as pernas tocar no chão. Na praia encontrou seis tripulantes indianos que se tinham salvo e, mais tarde, o capitão Hamilton.

A história dos indianos é diferente. Aos jornais portugueses contaram que tinham conseguido baixar um escaler e remado para a praia, mas nos depoimentos às autoridades britânicas, temendo ser acusados de não ajudar os passageiros, relataram versões diferentes que coincidiam em ter sido atirados à água e conseguido sobreviver por se terem agarrado a destroços.

Os sobreviventes foram levados para o hospital de Peniche em carros de bois. O capitão Hamilton sofria de delírios e insistia em voltar ao lugar do naufrágio onde esperava encontrar a sua mulher, mas só o tenente Rooke regressaria à praia onde ajudou a identificar alguns cadáveres.

Por esta altura relatam os jornais da época que a população de muitos quilómetros em redor ocorrera à Foz do Arelho para apoderar-se dos despojos. De tal forma que a imprensa acabaria por dar tanto destaque ao naufrágio como aos roubos que se lhe seguiram.

“Tem sido enorme os casos de rapinagem na praia”, relata O Caldense, para logo acrescentar que dois homens foram levados pelas ondas quando tentavam apanhar uns volumes que andavam à tona de água.

O Século de 30 de Outubro diz que “é incrível o que se tem passado. Os roubos não têm conta. Em todas as terras se vendem objectos roubados na praia. O povo em massa rouba tudo. A tropa é pouca e sem força para vencer os gatunos”.

Com efeito, tinha sido enviado para o local um destacamento de 20 praças e seis guardas fiscais, mas o mesmo jornal relata que eram poucos “para manter em respeito aquela turba que de cima das rochas, agrediam à pedrada os soldados, que não podiam defender-se”.

No Portugal miserável dos finais século XIX não surpreende que a notícia do navio inglês naufragado, ali mesmo junto ao areal, no qual viajava gente fina que transportava jóias e roupas caras, tenha feito ocorrer uma multidão à Foz do Arelho e à rocha do Gronho, do outro lado da “aberta”.

A criminalidade aumentou. À noite as pessoas juntavam-se nas tabernas à espera do nascer do dia para irem procurar mais despojos e sucediam-se as rixas e as navalhadas à medida que se inebriavam com o vinho e a aguardente. Durante semanas, o naufrágio do Roumania deixou Caldas da Rainha e Óbidos num quase estado de sítio.

O Roumania, construído em Glasgow em 1880, era um vapor com 3387 toneladas e era considerado um navio médio para a época. Fizera já várias viagens na rota da Índias ao serviço da Ancora Lines, uma companhia marítima pequena para os padrões da época.

Depois do saque inicial o navio permaneceu décadas assoreado, destruído paulatinamente pelas ondas. Em 1963 a firma António M. Parreira Cruz & Herdeiros Lda. procedeu a trabalhos de desmantelamento e recuperação de destroços do navio. Através de explosões controladas, conseguiu furar o casco e pôr a flutuar alguns despojos. Os mergulhadores recuperaram máquinas de costura intactas e fardos de chitas e fazenda em bom estado (no século XIX, em plena revolução industrial, o Reino Unido era grande exportador de têxteis). Também foram avistados no porão material ferroviário destinado a alguma linha férreas das então colónias indianas e até uma locomotiva desmontada.

Estas operações, contudo, eram perigosas e duravam muito pouco tempo porque raramente o mar dá tréguas naquele local e os mergulhadores tinham que ser içados quando este ficava mais revolto.

O cemitério inglês

Em Dezembro de 1989, um edital publicado na Gazeta das Caldas pelo presidente da Junta de Freguesia da Serra do Bouro (Caldas da Rainha), anunciava que se iria proceder “à exumação dos restos mortais dos cidadãos ingleses vítimas de um naufrágio ocorrido em Outubro de 1892”.

Em causa estava o então chamado Cemitério dos Ingleses onde jaziam pelo menos oito súbditos de Sua Majestade. Tratando-se de protestantes, as autoridades da época não os enterraram no “cemitério sagrado”, optando por criar um pequeno cemitério ao lado, devidamente separado por muros, para que as almas católicas e protestantes não se misturassem no mesmo solo sagrado.

Mas 97 anos depois a ampliação do cemitério da freguesia exigia a ocupação do cemitério inglês, ainda que à custa da destruição daquele singelo património.

O alerta da imprensa local e de alguns investigadores não evitou o pior — o cemitério dos náufragos seria desmantelado, mas ainda assim houve o bom senso de juntar as lápides num espaço único, agora em solo católico, onde permanecem como uma curiosidade histórica e como símbolo do naufrágio do Roumania.     

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