O arquitecto que fez uma cadeira para Maria Bethânia

O arquitecto brasileiro Marcelo Ferraz, que faz móveis há 30 anos, diz que o futuro passa por inventar o próprio trabalho. Propor projectos, expandir o seu campo, ir à luta para sobreviver. A excepção foram mesmo os últimos dez anos de muito trabalho no Brasil.

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O arquitecto Marcelo Ferraz esteve em Lisboa e no Porto para o lançamento do livro Rui Gaudêncio

Discípulo de Lina Bo Bardi — a arquitecta que Álvaro Siza citou quando construiu no Brasil —, o arquitecto brasileiro Marcelo Ferraz, tal como a mestra, também desenha móveis.

Não gosta da palavra “design” ou “designer”, porque não é um “novidadeiro”, como se explica no livro Marcenaria Baraúna, O móvel como arquitectura (Editora Olhares, São Paulo), sobre a oficina que criou em São Paulo há 30 anos, que funciona em paralelo ao escritório Brasil Arquitectura, fundado uns anos antes, também com Francisco Fanucci, com quem continua a trabalhar.

O livro acabou de ganhar no Brasil o Prémio Design Museu da Casa Brasileira (MCB), na categoria publicações, e foi lançado recentemente em Portugal. Mostra o trabalho de mobiliário da Baraúna que também podemos encontrar em Lisboa na exposição Como se Pronuncia Design em Português: Brasil Hoje, iniciativa do Museu do Design e da Moda (Mude), que ficará até ao final de Dezembro no Palácio dos Condes da Calheta.

O livro, que situa a Marcenaria Baraúna na história recente do design de mobiliário do Brasil, inclui um texto do português Frederico Duarte, crítico de design e curador da exposição do Mude, que se tem dedicado a estudar o design brasileiro, além de contribuições de Mina Warchavchik Hugerth, Ethel Leon e Mariana Wilderon.

Porquê o “móvel como arquitectura” como título? É uma espécie de manifesto antidesign?
A gente nunca gostou de ser chamado de “designer”. Apesar de ser uma palavra muito rica na língua inglesa, que representa mais até do que projecto, em português é uma palavra muito desgastada.

Como somos arquitectos muito fanáticos, chegámos à conclusão que a nossa ferramenta para desenhar uma cadeira ou um banco, a forma como entramos num tema, é a mesma quando projectamos uma casa, apesar de a escala ser outra.

Porque é que sentiram a necessidade de chegar à escala do móvel? É a procura da arquitectura como obra de arte total?
A nossa formação em São Paulo na Faculdade de Arquitectura tem essa visão de que o arquitecto é um generalista. Sem dúvida que a marcenaria nasce por influência da Lina Bo Bardi, com quem trabalhei 15 anos. Tínhamos acabado de fazer o Sesc Pompeia [um centro de lazer inaugurado em 1982 em São Paulo], que é uma obra importante, feito os móveis dentro do canteiro de obras, uma coisa muito entusiasmante.

Perguntava-lhe pelo lado obsessivo, de chegar a todas as escalas?
Tem também um pouco esse lado de arquitecto que acha que constrói o mundo. A gente se via no sonho de Frank Lloyd Wright, que quando desenhava um hotel fazia as mesas, os guardanapos, a roupa dos garçons e tudo o mais.

Uma das características da Baraúna é que os móveis nascem muito para alguns projectos de arquitectura.

Quando [a cantora] Maria Bethânia me pediu para fazer uma peça para uma exposição comemorativa dos 50 anos de carreira — ela fez isso com vários amigos —, fui buscar uma cadeira em que pensei 15, 20 anos. É aquela que tem um bico, em que você se senta de um lado ou de outro.

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Linha Maria (2015), uma cadeira de canto feita para Maria Bethânia

Tinha que tirar tudo, que também é uma prática de arquitectura, para chegar na essência. A obra não pode ter bagaço, mas ser justa. A economia tem que estar em todas as decisões, no mínimo da madeira para aguentar a estrutura. Cheguei nessa cadeira [Linha Maria, 2015], que é uma peça quase gráfica.

Mas foi uma provocação que levou a isso.

Todos os clientes se sentem confortáveis com esse desenho dos vossos projectos de arquitectura que chega até aos móveis? Às vezes não pode parecer que o arquitecto não confia na forma como o cliente se vai apropriar do espaço desenhado?
Existe esse incómodo. Muitas vezes fotografamos antes que chegue o decorador, antes que a obra mude completamente.

Mas muitos dos nossos clientes, para quem fizemos mobiliário, são de obras públicas. O grosso do trabalho da marcenaria é móvel de encomenda.

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Cadeira Frei Egídio e o Banco Caipira, com um dos modelos vernaculares que lhe serviram de inspiração

Nas casas tem que haver empatia e aí fazemos muitos móveis especiais, a cozinha, salas... Eventualmente, nesses móveis especiais, entra um banco, uma cadeira, uma mesa.

Qual é a história da Cadeira Girafa? Mostra a vossa maneira de trabalhar: referências históricas ou vernaculares, madeiras maciças brasileiras e a ligação a um projecto de arquitectura. São estas as três pernas dos vossos projectos de mobiliário?
A Lina Bo Bardi, que foi uma arquitecta pioneira do desing no Brasil nos anos 50, a certa altura parou de desenhar móveis. Teve uma marcenaria, um estúdio de design, mas deixou de acreditar em fazer móveis para o mercado, que consome e deita fora.

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A famosa Linha Girafa (1987), que chegou ao MoMA em 2016

No entanto, quando veio o Sesc Pompeia, projectámos os móveis. O mesmo quando fizemos a recuperação do centro histórico de Salvador [Bahia], em que provocámos a Lina para fazermos os móveis para o restaurante da Casa do Benin e do Teatro Gregório de Matos. Projectámos a Cadeira Girafa para o restaurante do Benim e a Cadeira Frei Egídio, aquela dobrável, para o teatro.

Na Cadeira Girafa, Lina começou por dizer que tinha uma ideia que não dava certo, vinda um pouco do banco do Alvar Aalto. Foi muito por insistência da gente, e porque tínhamos acabado de abrir a marcenaria, que avançámos. Fizemos muitos protótipos até chegar nas cadeiras Girafa e Egídio definitivas.

Porque é que lhe chamam Girafa?
Porque tem a orelhinha e as pintinhas. O nome apareceu de olhar para o objecto. É engraçado que a cadeira não pegou logo e sempre foi uma cadeira para aquele lugar, aquele projecto. Só recentemente, com essa fama que a Lina ganhou, é que a Cadeira Girafa foi redescoberta: entrou para a colecção do MoMA, juntamente com a cadeira Egídio.

A nossa comemoração dos 30 anos era uma fotografia com uma girafa de 1986 e outra de 2016, uma bem oxidada e outra novinha. E dissemos: “Puxa, a gente tanto não é novidadeiro que está repetindo uma coisa com 30 anos.”

É possível continuar a fazer móveis com madeiras maciças? Não há uma contradição entre o aspecto frugal das peças e essas madeiras maciças? Olhamos para aquelas madeiras e vemos a Amazónia delapidada...
Eu tinha uma amiga, uma crítica de design muito boa, que chegava na marcenaria e dizia para provocar: “Cada vez que vejo um banco desses, eu vejo uma árvore no chão.”

Aquelas madeiras todas vêm de onde?
A gente acha que é nobre o uso da madeira da Amazónia para fazer mobiliário. Na história da humanidade, há essa transformação fascinante, do Japão à Finlândia, que é transformar a árvore numa cadeira, numa mesa, que vão durar 200 anos. Estas madeiras são muito densas, cheias de seiva, de óleo, e não dão bicho. Na Europa, nos países nórdicos, há seis tipos de árvore e as pessoas dominam-nas. No Brasil, a gente não sabe ainda exactamente as propriedades das madeiras e como usá-las.

Há muita madeira para descobrir e nós já passámos por 15 madeiras. Quando começámos era permitido usar o mogno, hoje é proibidíssimo. Depois usámos uma madeira chamada grumixava, incrível, muito bonita, foi proibida também. Hoje até o pinho brasileiro, a araucária, está proibido. O tempo todo você está lindando com novidades, o que é bom e é ruim, porque não desenvolve [know how].

Quando um brasileiro olha para estas madeiras vê esse lado exótico? Onde é que se compra essa madeira?
Hoje em dia você tem um mercado de madeira de procedência conhecida e legal. E a gente sabe que tem muita documentação falsa. Nós já participámos várias vezes em leilões de manejamento de madeira indígena, em que uma etnia tem licença para colocá-la no mercado.

“Conforto duro”, como se diz no livro, é uma descrição justa para o vosso trabalho?
Um conforto duro talvez faça pensar mais do que esse sofá em que estou sentado. A gente tem que pensar na postura. Não que a gente não goste das almofadas, mas muitas vezes em alguns ambientes é bom sentar elegantemente. O conforto duro é esta atenção nas coisas.

Significa poucos materiais?
Significa a verdade dos materiais, acho que a gente ainda acredita um pouco nisso.

Linhas...
... muito rectas, a maior parte das vezes.

A sua peça mais recente chama-se cadeira Isa, d’Après Siza. Qual é a história dessa inspiração?
Sempre quis fazer uma cadeira empilhada. A Girafa é empilhável, mas eu queria fazer uma mais levinha.

Vi há pouco tempo aqui numa exposição do Museu do Azulejo uma cadeirinha que ele tinha feito para a Faculdade de Arquitectura. Tinha muitas delas quebradas na Universidade do Porto e fui estudando o jeito de fazer com uma madeira brasileira. Decidi fazer uma pecinha pura, em que o acento é do tamanho do encosto. Uma madeira dura, uma madeira brasileira, me deu a chave para fazer a ligação: são dois nozinhos que seguram o eucalipto, que é a estrutura dela, e o compensado naval do assento e do encosto.

Já falou com o arquitecto Álvaro Siza sobre a cadeira?
Mandei para Siza o livro e ele mandou uma cartinha muito bonita. Disse que eu tropicalizei um pouco a cadeira dele.

Fiquei pensando em botar um nome e a minha mulher se chama Isa. Ela adorou. Daí Isa, d’Après Siza para assumir de onde ela vem. É outra coisa que a gente gosta, acha importante a citação.

Como o Siza, que cita a Lina Bo Bardi no projecto de Porto Alegre no Brasil?
Pois é, ele me mostrou um dia. Levantou o papel e falou: “Olha, Lina Bo Bardi.”

Porque é que o vosso escritório de arquitectura se chama Brasil Arquitectura? É uma chamada de atenção para a importância do território?
Foi uma coisa de jovem. Parece muito pretensioso e hoje não teríamos essa coragem. A gente começou por pensar em botar o nome de uma madeira, um nome indígena, a sigla dos nossos nomes... Tinha acabado de ser lançado o disco Brasil, de João Gilberto, Caetano, Bethânia e Gilberto Gil...

São 38 anos de escritório e quando olho para trás vejo que nós fazemos trabalhos no país todo. Talvez seja o escritório que tenha mais trabalho dentro do mapa do Brasil, desde o confim da Amazónia, na fronteira com a Colômbia, um centro que a gente fez com os índios em São Gabriel da Cachoeira, até ao Recife, uma homenagem ao Luiz Gonzaga, ou ainda o Museu do Pampa, no limite com o Uruguai.

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Conjunto KKKK e Parque Beira Rio (1996), São Paulo
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Conjunto KKKK e Parque Beira Rio (1996), São Paulo

A gente também é formada na ditadura, estudou nos piores anos do país. Defender o Brasil, ser brasileiro, conhecer o país era um instinto que quase tinha que fazer quem militava politicamente na esquerda. Nossos mestres eram Lina, Darcy Ribeiro, [Vilanova] Artigas, toda essa gente... Aí o Brasil, de repente, coincidiu.

No vosso site fazem a afirmação das bases culturais da vossa arquitectura na sua ligação ao lugar. Mas ressalvam que não estão a fazer uma arquitectura regional, que a vossa arquitectura é universal. Também é uma espécie de regionalismo crítico, no conceito de Kenneth Frampton, termo que foi muito usado para falar da arquitectura portuguesa na sua genealogia ligada à Escola do Porto?
Nunca gostei desse termo do Frampton. Quando dá o rótulo você congela, mata. Claro que com mais distância, mais calma, você pode entender o que ele quis dizer e claro que a arquitectura de Portugal, da Escola do Porto, tem uma personalidade forte. A gente lê essa personalidade. Tem um lado muito bom, muito interessante, é uma escola realmente.

Talvez em São Paulo exista um pouco uma escola paulista. Eu sou de certa maneira ligado a essa escola, fui formado lá, mas sinto muitas vezes que é muito rígida. Costumo dizer que a FAU-USP me formou e a Lina me deformou. Tive essa grande sorte na vida de ter trabalhado com a Lina, uma pessoa de outro mundo.

Acho importante dizer o que está escrito no nosso site, porque mesmo no Brasil os nossos colegas dizem que Brasil Arquitectura é uma coisa meio regionalista, ligado às tradições, ao vernacular. Eu fiz um livro de arquitectura vernacular.

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Rui Gaudêncio

Como provocação, acha que há uma maneira brasileira de fazer arquitectura associada a uma certa liberdade permitida por um clima?
Não dá para negar que o clima favorece muito. De São Paulo para o norte as coisas são mais simples, podemos usar certos elementos sem muita preocupação com o vento ou o frio. Mas isso é compensado por outros elementos, pois você precisa de se proteger, ter beirais.

Esse projecto da Amazónia [São Gabriel da Cachoeira] tem uma pele toda de madeira e palha e o prédio de alvenaria está dentro. É uma arquitectura feita com sabedoria dos índios.

Então, voltando à pergunta, há uma arquitectura brasileira?
Ela é brasileira porque é feita por brasileiros [risos].

O que é que significou o Sesc Pompeia para a arquitectura brasileira?
O Sesc Pompeia foi uma verdadeira bomba que caiu no final da ditadura no Brasil. Foi um choque porque se aprendia que em arquitectura se começa do zero. Durante muito tempo fomos um país monotemático em termos de arquitectura: era Oscar Niemeyer e Oscar Niemeyer. Com todo o respeito, acho que foi um grande arquitecto, mas tem um modo de fazer ainda muito da primeira metade do século passado, em que só se fazia com a terra arrasada... De repente, temos uma arquitectura que nasce das entranhas, em que não se sabe exactamente o que é novo ou antigo.

Mas as pessoas gostaram e o Sesc Pompeia é hoje património nacional.

Foi uma experiência grandiosa em que a Lina juntou a experiência dela dos anos da Bahia, do Masp em São Paulo e se dedicou já madura a fazer a cidade ideal. É a cidade do respeito, do convívio, da tolerância. A Lina chegou a dizer que tinham feito uma experiência socialista. É impressionante, vamos lá e perguntamos que lugar é esse? Esse é o sentido mais profundo da arquitectura, você altera o comportamento — a questão formal não interessa.

O que é que a Lina Bo Bardi lhe ensinou?
Primeiro, a ser livre. Buscar soluções em todos os lados sem preconceitos.

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A Praça das Artes (2012), um projecto do Brasil Arquitectura para São Paulo

A Praça das Artes, em São Paulo, é um filho do Sesc Pompeia?
Ao projectá-la nós nunca pensámos nela como um filho do Sesc Pompeia. Mas no final, quando pronto, eu tenho que admitir que é.

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Praça das Artes

É um exemplo de como é possível usar o fundo dos lotes. Numa metrópole não faz sentido mais ter o quintalzinho de laranjeiras. Em São Paulo, que falta muito espaço público, pedestre, a gente abriu uma clareira para a população caminhar. Uma das tarefas do arquitecto é conquistar espaços para a população.

Aliás, defende que a cidade em São Paulo tem que se abrir.
A arquitectura tem de ser feita também com demolição.

Porque é que tem denunciado a urbanização das favelas?
O modelo de urbanização das favelas é de fazer somente um remendo. Os europeus e os americanos chegam ao Brasil e ficam encantados com as favelas, mas eu sou radicalmente contra isso. Aquilo é uma vida dura, feia, sem conforto nenhum. Reurbanizar, no meu modo de pensar, é fazer com que as favelas possam honrar o nome de cidades. Você não pode dizer que uma favela é uma cidade, o artefacto mais importante criado pela Humanidade.

Em 2017, o vosso site tem apenas um projecto. A crise fez parar a encomenda no Brasil?
A crise fez parar a encomenda principalmente nos últimos dois anos. Mas como no Brasil passámos a vida inteira em crise, a lutar para pegar um projecto por menor que fosse, a excepção está nos últimos dez anos.

Como é que um atelier se adapta a isso?
Primeiro, diminuindo de tamanho. Alguns escritórios fazem alguma coisa para o exterior, mas o Brasil não é um país muito conectado.

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Museu do Pão (2005), Ilópolis, Rio Grande do Sul

Nós fazemos como sempre, inventando o próprio trabalho. Isso vai ser o futuro dos arquitectos.

Como é que se inventa o próprio trabalho?
Significa se preocupar com o espaço público da cidade, ver o que está mal e ir na prefeitura propor mudar. No Brasil são 5600 municípios. Todos têm alguma coisa a ser feita, seja a recuperação das zonas ribeirinhas, porque sempre tem um rio, um mar, uma praia, uma lagoa, seja transformar a preferia de favelas das cidades.  O Museu do Pão foi uma invenção nossa, o museu KKKK também. Ninguém encomendou, fizemos e temos que ficar um pouco cuidando, ajudando a programação, para não ficar uma coisa muito provinciana, estanque.

O que é que se passou com o Museu do Trabalho e do Trabalhador e a polémica toda em redor de Lula da Silva?
O Museu do Trabalho é na terra do Lula. Conta a história do trabalho no Brasil, mas muito a partir da história de São Bernardo do Campo.

A imprensa gosta de chamar museu do Lula, mas nunca foi um museu do Lula. Quando o prefeito, que estava fazendo esse museu, deixa o governo e vem a oposição, esta faz uma investigação, um grande barulho com uma das acções tipo “mini Lava Jato”. A obra do Museu do Trabalho, que está quase pronta, pára. A gente se viu no meio da história, uma coisa terrível, porque como sempre fizemos o trabalho mal pago e com muito esforço.

Enfim, é o Brasil de hoje, que está tentando fazer uma limpeza necessária, mas está levando de roldão muita gente boa.

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