Os estudantes abraçados

Uma manhã, entre dois slides de uma aula habitual fiquei em estado de choque. Dois estudantes estavam abraçados, isto é, suavemente inclinados um sobre o outro. Percebi porquê aqui em Porto Alegre, vendo dois estudantes replicando a proeza: eram brasileiros. No Brasil, o namoro é generalizado também fora das aulas e não tem fronteiras. É um sinal distintivo, quase uma marca global. Os brasileiros, que não têm fama de celibatários, estão agora em plena ascensão amorosa. Damo-nos conta da inesperada relação entre a ciência da economia e a arte do erotismo. Jesus Cristo podia não saber nada de finanças, como diz o poeta, mas no nosso tempo ajuda muito até para namorar.

Vir cá tem por isso qualquer coisa de vouyeurístico. Nós somos observadores, quase espiões, vindos de outro tempo, regressando dos mortos. É por isso imensa a emoção ao entrarmos na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre. Aquela que é provavelmente a melhor obra de Álvaro Siza é uma espécie de carta de Pero Vaz de Caminha ao contrário. Conta aquilo que fizemos, que somos, que fomos descobrindo. Conta como é que fomos articulando o nosso gosto pela cultura dos outros; revalida a nossa universalidade. Faz mais pelas relações com o Brasil do que mil encontros com empresários pálidos em salas de hotel iluminadas como frigoríficos.

O Iberê Camargo é uma extraordinária lição prática de como fazer torto e errado; certo e bem; fragmentário e uno; feio e belo; expressionista e minimalista. Que outro arquitecto do mundo conhecido podia integrar Lina Bo Bardi e Frank Lloyd Wright no mesmo edifício, sem qualquer ponta de show off? O talento pede emprestado, o génio rouba, dizia Oscar Wilde. O virtuosismo e a coralidade deste edifício são tão definitivos que podemos dizer que o século XX acabou aqui. Entre os braços cubistas que saem e voltam ao edifício, no que pode ser interpretado como um discurso amoroso, um poema arquitectónico.

A lusofonia como conceito tem perdido força no Brasil, se é que alguma vez teve. O Iberê está cheio de gente que fala português mas que não pensa especialmente no psicadélico som luso que emite ao falar. Esta arquitectura, em contrapartida, envolve-nos como uma partida de futebol por arbitrar. Nem tudo tem de ser a língua, o comércio externo e quem viaja em executiva. A língua fala de muitas maneiras. As artes são uma oportunidade para, se não for possível namorar, pelo menos representar, filmar, espacializar, o namoro.

Regressando à sala de aula, concluí que os estudantes abraçados estavam duplamente concentrados na aula. Prestavam homenagem à matéria inclinando-se entre si para escutar. Não os pude interromper. Como o faria? Seria como interromper uma civilização na Primavera.

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