Petição: associação quer “dar voz” aos direitos de cavalos, burros e mulas

Nos últimos cinco anos, a Their Voice resgatou mais de 1500 cavalos, mas ainda há muitos mais a precisar de ajuda. Em conjunto com outras associações, lançou uma petição pública pelo "melhoramento das leis para protecção de equídeos". Mais de 11.000 pessoas já assinaram

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Their Voice

Quando Sharon Clarke se apaixonou por Portugal e decidiu viver por cá, decidiu também que queria ter um cavalo. Começou por limpar apartamentos, depois abriu uma imobiliária e, com o negócio a correr bem, a inglesa "tinha finalmente dinheiro para ter um cavalo”, contou, por telefone, ao P3. O que não tinha, lembra-se, era "preparação para ver o estado em que encontrou a maior parte deles" em várias quintas das Caldas da Rainha: "magros, com feridas visíveis, guardados em sítios terríveis”. Comprou finalmente um e depois de visitar vários estábulos foi comprando outros — “para os salvar”. De repente era dona de oito cavalos e decidiu fechar a imobiliária para lhes dedicar o dia, todos os dias. Hoje tem 87 animais e nos 15 estábulos espalhados pelos 15 hectares da quinta que adquiriu quando fundou a associação Their Voice já passaram "mais de 1500", resgatados em vários pontos do país.

A inglesa sabia que “o problema era grave”, mas desconhecia “exactamente quão grave”. Também por esta falta de conhecimento é que, em conjunto com outras associações — como o Movimento a 4 Patas —, criou uma petição que defende o “melhoramento das leis para a protecção de equídeos”. O documento já conta com mais de 11.000 assinaturas e o objectivo é que seja discutido em Assembleia da República.

Com excepção da obrigatoriedade do microchip — o que muitas vezes lhes dificulta o resgate, porque exige a permissão dos donos, sublinha Sharon —, “estes animais a pouco mais têm direito”. Uma das principais propostas da petição pública é “pôr fim ao abandono de equídeos, à sua detenção sem qualquer tipo de condições e à morte e abandono dos mesmos sem qualquer possibilidade de intervenção pelas forças de segurança, bem como a falta de fiscalização por parte da entidade fiscalizadora (DGAV)”.

Estas situações em Portugal são “muito mais comuns do que deveriam ser”, denuncia Sharon. “Chocam” transeuntes e turistas, “desabituados a um cenário que é absolutamente inadmissível noutros países europeus”. Quando telefonam à GNR a denunciar, “muitas das vezes” já é tarde de mais e tudo o que há a fazer é abater o cavalo “com a dignidade que lhe resta”, conta. Foi assim, recentemente, com uma égua, já prostrada no chão de um descampado, sem água e “abandonada pelos donos quando deixou de ter forças para puxar o atrelado”. “Deixaram-na ali ainda com as cordas a marcar o dorso, já em sangue”, a “bater com a cabeça no chão sem parar e a morder o lábio de cima para suportar as dores em que estava”. Tudo o que Sharon e alguns voluntários da associação puderam fazer foi segurá-la, dar-lhe analgésicos que “de nada serviram” e esperar que o veterinário chegasse com a injecção letal.

Mas há “outras vezes em que os cavalos são resgatados a tempo” e conseguem chegar ao santuário que Sharon fundou em 2012, no distrito de Beja, a 20 quilómetros do centro da cidade alentejana. Cinco anos depois de ter começado, o que queria mesmo, admite, era mais espaço para ter campos de pasto e mais mãos para ajudar. Há dias, diz, em que chegam a receber 10 a 15 casos de denúncias de maus-tratos a animais “demasiado magros que mal se aguentam em pé” ou pedidos de ajuda de “proprietários com cavalos lesionados, velhos, doentes" ou com "problemas financeiros e que, por isso, deixaram de poder tratar deles”.

A associação à qual preside não tem fins lucrativos e funciona com o apoio de voluntários e doações, que “chegam maioritariamente do estrangeiro”, principalmente da Alemanha. E, muitas vezes, num montante menor do que o apresentado nas contas que caem todos os dias de veterinários, transporte, comida, desparasitação e medicamentos. A cada três semanas, por exemplo, são precisos “três mil quilogramas de ração” e “22 toneladas de feno” para alimentar os cavalos, as mulas e os burros resgatados que permanecem na herdade da Their Voice até estarem recuperados.

“Os cavalos têm sempre um preço. Nem que seja o da sua carne”

Entre os equídeos ao cuidado de Sharon Clarke há alguns que “não podem ser montados”, outros que “nem conseguem levantar-se sozinhos” ou “são muito velhos” (o recordista é um garanhão de 34 anos) e, por isso, não podem ser adoptados. São 15 a 20 os animais nestas condições; para os outros, o objectivo é recuperar para, depois, ter um novo dono.

A Their Voice impõe "muitas regras" ao processo de adopção para evitar “que os animais voltem a sofrer o que já sofreram”. Primeiro, “investigam o candidato e as condições que este pode oferecer”. Quando aceite, passam à fase contratual onde o novo dono assina um documento, “válido em qualquer tribunal, que atesta que não o venderá a terceiros nem o enviará para matadouros”. Por fim, tem de pagar uma “taxa de adopção” que cobre os gastos que a associação teve com o equídeo. “Pode-se comprar um cavalo por 300 euros”, diz Sharon. “O verdadeiro problema é a manutenção”, que chega a custar o mesmo valor, todos os meses.

O maior problema, diz, é estes animais ainda serem “vistos como objectos” e, por isso, terem sempre um “valor associado”. “Nem que seja o da carne.” Ainda há dez meses receberam 27 cavalos, salvos aquando do encerramento de um matadouro ilegal. Hoje estão “num estado de saúde fantástico”, mas “não podem ser adoptados porque o caso ainda está a ser investigado”. Na semana passada, reuniram com a Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) para "discutir esta situação específica". Até à data, assegura, a DGAV “ainda não deu um cêntimo”.

"Em Portugal, os cavalos não têm voz (…), sofrem em silêncio" — e foi por isso que Sharon baptizou a sua associação Their Voice. Emprestou aos animais a sua voz, mas não se ilude: a “verdadeira ajuda” só chega com “leis apropriadas”.

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