“Tenho um sentimento nostálgico que me ajudou a ser escritor”

Felicidade talvez seja um romance para escrever e pássaros para ver. Na Califórnia, onde vive, ou numa paragem de promoção de um livro ou conferência - em Lisboa, por exemplo. Um dos mais celebrados autores americanos confessa que foi a nostalgia que o levou à escrita e a ira que o alimentou.

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Miguel Manso

Chama-se torcicolo e tem qualquer coisa de reptilíneo na maneira como mexe o pescoço. É um pássaro pequeno, algo raro que se confunde com os troncos ou galhos onde costuma pousar. Come e espreita o que o envolve, uma mata de sobreiros, um lago ladeado de juncos, uma águia patuda que voa em círculos. O telescópio permite ver a lista negra das penas ao longo do pescoço que se contorce. A visão do torcicolo no silêncio da tarde quente de Outono é capaz de provocar o maior sorriso no rosto de Jonathan Franzen e um “só por isto já valeu o dia!”.

Se querem saber como é o escritor descontraído, “profundamente feliz”, como afirma, é acompanhá-lo no seu passatempo preferido: observar pássaros. Escreveu sobre isso nas suas memórias, Zona de Desconforto (original de 2006 publicado em Portugal em 2012 pela D. Quixote). “A minha reacção a esta felicidade foi, como seria de esperar, o receio de ter caído nas garras de alguma coisa doentia, nociva e errada. Uma dependência. (...) Ver uma ave interessante dava-me vontade de ficar cá fora e ver mais aves interessantes. Não ver uma ave interessante deixava-me triste e de mau humor, o único remédio para isso era também continuar a observar”, escreveu então num texto sobre o princípio desse prazer que o fazia culpar-se, por exemplo, de passar tantas horas fechado a olhar para um computador. Voltou ao tema no romance Liberdade (D. Quixote, 2011), mas não fala disso agora. Não fala, aliás, do escritor no dia em que só quis matar saudades dos pássaros da Europa, quase 30 anos depois de ter estado em Portugal pela primeira vez. Veio em trabalho, uma conferência na Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, algumas entrevistas, mas fez o que sempre faz: tirou tempo para ver aves. Só isso. E ali está o inusitado torcicolo. Volta ao telescópio e ao silêncio, o sorriso mantém-se; serão só mais uns segundos, quem sabe um minuto, até o pássaro voar.

Tem que ver com prestar atenção, com silêncio, nada disso está desligado do acto de escrever, “a sensação exaltante” de que o “mundo está cheio de possibilidades”, como também refere nesse texto escrito seis anos depois de ser um escritor de sucesso, o grande escritor da América, como lhe chamaram aos trinta e poucos anos, quando publicou Correcções, sátira a uma certa América centrada na família Lambert. Com Liberdade e Purity (D. Quixote, 2015) associaram-no a um compromisso: o de um escritor com a sociedade em que vive. Não é isso que o move. “Isso vem cá muito em baixo na lista do que me faz querer ser escritor”, afirma numa conversa em Lisboa, de janela aberta para o rio, um jardim e o canto dos pássaros que, quando chega, o faz parar tentando adivinhar de que espécie é aquele trinar.

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Jonathan Franzen, The Comedy of Rage, escreveu Philip Weinstein como título da biografia literária deste escritor do Midwest, nascido no Illinois há 58 anos Miguel Manso

Passaram-se dois anos de Purity, o romance em que Franzen explora a ambiguidade da palavra “pureza”. A começar pela protagonista, uma jovem de vinte anos que rejeita o nome próprio, Purity, por não se achar digna da pureza implícita, a mesma rapariga que entra numa organização liderada por um homem que compete com Julian Assange e a WikiLeaks. A missão é purificar o mundo, libertá-lo da culpa que acaba por ser uma rede intrincada em que essa mesma rede, a Internet, é o motor do novo totalitarismo. Franzen sorri. O livro é uma sátira e nele a palavra pureza, com toda a carga de moralismo que questiona e desmonta, não carregava o peso dos que a evocaram para eleger Donald Trump. Pureza de valores, de raça, a América pura como ideal político. Franzen recosta-se na cadeira, une as mãos à volta do queixo. “Não me parece directamente ligada a Donald Trump.” Ou talvez. “A frase que mais me ocorre e mais me parece ligada a essa ideia é a famosa ‘drain the swamp’, drenar o pântano, a purga. Ele chegou a Washington para drenar o pântano. Por outras palavras, Washington está suja e corrupta e aquele homem de negócios de sucesso quer limpar as coisas. É essa ideia de pureza que se pode associar a Trump. Mas o candidato da pureza era talvez Bernie Sanders, que perdeu para Hillary Clinton nas primárias.” Porquê? “Era por ele que os mais jovens se sentiam atraídos, porque ele tinha ideias fantásticas sobre um mundo melhor. Não foi bem-sucedido, nem sei se alguma vez poderia ser, mas quando ele dizia que a saúde deve ser um direito universal, isso move. É uma excelente ideia, mas de algum modo percebe-se que não vai acontecer nos Estados Unidos.”

Facebook: ficção dissimulada

Jonathan Franzen não esconde o incómodo em falar de Donald Trump. Preferia sempre não o fazer, mas volta a ele de forma voluntária e recupera-o para a conversa. “A pureza, no caso de Trump, também pode ser percebida na lealdade pessoal que ele exige para ele e para pessoas como Steve Bannon, o seu estratega, que montou uma campanha para purgar o Congresso de pessoas que não fossem leais a Trump. Sempre que alguém saca do revólver em nome da pureza, para purgar, é mau.”

Purity é um romance. Ficção, sublinha, onde surgem perplexidades e o que se sabe ser uma perspectiva muito crítica em relação ao modo como as novas tecnologias se apresentaram e foram adoptadas e assimiladas pela sociedade. Há utilidade? Sim, mas...  “Indiscutivelmente, uma das coisas que me preocupam são as multidões e as suas dinâmicas. Trato disso em Purity. Por exemplo, a ideia de Silicon Valley poder salvar o mundo, tornar o mundo um lugar melhor. Hoje talvez isso já nos faça sorrir. Uma das coisas boas que aconteceram com a eleição de Trump é que as pessoas estão a preocupar-se com as redes sociais. O Twitter entrou em descrédito. Ele criou o Presidente Trump e continua a ser o seu palco de discurso preferido. Mesmo o Facebook está a falhar na sua intenção de tornar o mundo um lugar melhor. Veja-se a discussão acerca da relação entre as fake news e o Facebook... O Facebook é uma máquina de fazer dinheiro, não é um organismo de utilidade pública, e eles não se podem permitir filtrar as notícias, porque se as filtrassem as pessoas não usariam o seu produto. Isto está a começar a fazer acordar as pessoas.” Entusiasma-se para logo moderar o tom. “A Europa tem estado à frente dos Estados Unidos no que se refere ao receio de como estas empresas podem afectar as nossas relações, mas mesmo na América essas questões surgem, em parte por causa da eleição de Trump.”

Por isso está optimista. Isso mesmo. Optimista com o crescente cinismo dos utilizadores face às redes que utilizam, a consciência de saber que estão a ser manipulados, saber o que é editar-se como um escritor edita as suas personagens na ficção. Um perfil de Facebook é uma representação, há uma persona. Ter essa ideia, de que cada um se pode falsear e de que todos se podem falsificar, ajuda a entender o mecanismo? Outra pausa. Os silêncios de Franzen são para se situar. Mesmo que repita um pensamento não gosta de repetir a sua formulação. “Sim, é verdade, é como na ficção, excepto o facto de a ficção se apresentar enquanto ficção.” E coloca assim o Facebook no capítulo da ficção dissimulada. “É uma diferença crucial”, acrescenta, para depois comparar o que se passa com o Facebook e as fake news com o sistema de crédito nos Estados Unidos, que atribui um perfil de cliente em função dos dados que obtém. É a partir dessa categoria que irá gerir a sua vida. É a partir também dessa categorização que irá funcionar em rede. Tudo se baseia numa suposta confiança, por um lado, e por outro na capacidade de resposta. Em troca, o cliente ou utilizador também confia.

“Oferecem às pessoas o que parece um meio maravilhoso totalmente grátis; mas não é grátis, não é de borla. Não estamos a ser servidos pela Google, mas é a Google que nos está a usar”, refere.  “Nós somos o produto, não os consumidores.”

Falava de Trump, do efeito fake news. “Esta consciência é extremamente encorajadora. E por mais que deteste estas empresas, não venho dizer que este é o fim dos tempos e escorregar numa visão completamente distópica do futuro. Estamos muito no início, mas dez anos depois das redes sociais e de vinte anos desde o Google as pessoas estão a começar a dizer ‘espera aí, eles estão a roubar-me informação e a vendê-la a alguém!’. Esta consciência é coisa para se estar optimista.” 

O modelo consumista das relações pessoais

Parte da escrita de Franzen decorre na fronteira entre o privado e o modo como esse privado ou o indivíduo se reflecte e é afectado socialmente. Estamos em território tão íntimo quanto político. A linguagem faz parte disso. Por exemplo, a linguagem dos protestos anti-Trump é a linguagem certa, ajustada?

“Não”, mas faz uma pausa antes de continuar. “Bem... alguma será. Acho que o foco das pessoas do movimento Black Lifes Matter no apelo de Trump aos supremacistas brancos é apropriado. Está a construir e a reerguer os supremacistas brancos e é muito duro ser um afro-americano; temos um problema quando pomos tanta gente negra na prisão, a polícia trata os negros pior do que os brancos. Ter um Presidente que joga com os medos raciais é ofensivo. Por outro lado, não acho que sirva de alguma coisa dizer que Trump é um doente mental — a maior parte das pessoas tem doença mental —, fiquei agitado em Janeiro quando o PEN America organizou os escritores num movimento Writers Resist para dizer que Donald Trump era uma grande ameaça à liberdade de expressão. E perguntei-me se tinham lido os seus tweets. A expressão parece-me sobejamente livre nos Estados Unidos! Talvez demasiado livre. Sim, é o pior Presidente que o país já teve. Está a fazer coisas terríveis no ambiente, há o sentimento de estarmos entre a maior crise de todos os tempos, mas a nível económico as coisas parecem estar muito bem. Sim, estou preocupado com a questão da Coreia do Norte, mas realmente ele está a falhar; não está a conseguir fazer nada. Porque é que isso é uma crise?! Ele é um Presidente terrível que não consegue fazer nada excepto aprovar umas poucas ordens executivas. Porque é que não se pousa o telefone e se pensa noutra coisa? Deixem-no ser um idiota. Se tweetar é o problema, então não... Ahhh. Não participem nisso Ele está apenas a conseguir conteúdo para o Twitter.”

Trump nem para personagem de romance serve, e é no romance que se foca agora. Lêem-se os seus livros e percebem-se as camadas em que o ser humano — personagem — se movimenta. São cinco romances desde 1988. Raramente refere os dois primeiros, The Twenty Seventh City Strong Motion (1992). Diz que escreveu três bons romances: CorrecçõesLiberdade Purity. Três livros, três palavras, três títulos que manifestam uma zanga pessoal com o que essa palavra significa em determinado contexto ou momento. As correcções dos mercados financeiros do final do século XX; a suposta liberdade apregoada pela Administração Bush e invejada pelos inimigos terroristas, a tal pureza que tanto pode estar na boca de membros do Tea Party, em Silicon Valley, ou em membros da jihad. Palavras de múltiplo sentido, ambíguas, sinal de um tempo de que o romance faz parte enquanto todo, um universo total que pode ser lido isoladamente e que tem vida para lá desse tempo. Mais: não pretende ser legitimado pela sociedade que lhe deu origem. Nasce dela e ganha vida própria quando encontra o leitor.

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E a conversa segue agora para outra palavra: leitura. Saber como se edita na rede pode ajudar a ler ficção? 

“Isso seria talvez possível se as pessoas que usam o smartphone passassem a ler um livro. Não acontece. As pessoas já não lêem, e se sabem um pouco mais acerca do modo como um escritor manipula a linguagem, isso não nos ajuda em nada enquanto pessoas que publicam livros.” É preciso olhar para o motivo. “As pessoas editam-se nas redes sociais com o objectivo de que gostem dela, querem que gostem delas. Podemos argumentar que também gosto de que os meus livros sejam apreciados e trabalho cuidadosamente para isso. Vivo como escritor e não tenho nada contra vender, mas nas redes sociais o que estamos a vender somos nós próprios!. Parece o modelo consumista de comprar e vender aplicado a larga escala ao nível das relação pessoais. Parece-me uma perda de tempo, mas não sou grande consumidor... E nunca achei que toda a gente gostar de mim fosse grande ideia ou fizesse muito sentido...”

Um pacto com o riso

Ele é o homem que escreve porque isso o faz feliz e, ao contrário do que a sua maneira de ser — facilmente irascível, confessa — pudesse sugerir, é um escritor que tende a aproximar-se cada vez mais de quem o lê. Em várias entrevistas, entre elas a que deu ao PÚBLICO em 2015 a propósito de Purity, confessa que quer dar prazer a quem o lê. Nos livros de Franzen, na ficção, memória ou ensaio, há uma relação que ele quer cúmplice entre escritor e leitor. Para isso, fala de um pacto, de verdade, em que o riso ajuda a compor o lado negro para onde ele tende a ir. Chamem-lhe comediante que ele até gosta. Ou escritor público, porque publicamente não se coíbe de manifestar posições fortes. Como ainda recentemente, numa leitura perante estudantes em Harvard. “Então, vamos simplesmente desistir da natureza?”, interpelou a audiência. Era ele a chamar a atenção para as alterações climáticas, o ambiente político, as medidas anunciadas pelo Presidente. Quando diz que não gosta da ideia de estar comprometido com a realidade não quer dizer que não se interesse, mas apenas que esse não é o seu projecto literário. 

Volta quase ao início. A Correcções, o romance com que venceu o National Book Award. “O que se passou com Correcções foi muito louco. Foi publicado no dia 3 de Setembro de 2001 e todo o livro está na sombra de uma espécie de bolha que tem de ser corrigida.” A tal correcção bolsista. Mas também outra ideia que atravessa o livro: a de que uma geração vem para corrigir a anterior, quer suplantá-la. O filho que se irrita com os defeitos do pai e faz tudo para não os ver em si mesmo. A sociedade em permanente tentativa de superação. “E a correcção aconteceu literalmente no país oito dias depois de o livro ser publicado. Esquisito!”

Conta que de vez em quando revisita esse livro. “Pego ocasionalmente em Correcções e há passagens que acho interessantes, boas personagens, e há coisas que mudaria.” O quê? Porquê? “Porque mostro demais”, responde. A ideia é sempre deixar espaço, dar espaço, silêncios. “E há por vezes um adjectivo a mais. É isso que vejo quando olho para o livro e não uma tentativa de representar a realidade... Não é coisa em que pense enquanto escrevo, não sou bom a falar da representação da realidade social.” 

E recosta-se mais uma vez na cadeira. Não teme o silêncio também nas conversas. É capaz de ficar calado e os olhos são o único sinal de que continua na conversa. Procura a frase, a clareza da ideia. Onde está a ira de que se alimenta? “Acho que estou a ficar mais calmo”, ri. Poderia dizer como Denise, em Correcções: “A ira é uma ocorrência neuroquímica autónoma.” Franzen diz apenas que não sabe.

Jonathan Franzen, The Comedy of Rage, escreveu Philip Weinstein como título da biografia literária deste escritor do Midwest, nascido no Illinois há 58 anos. “Quem é Jonathan Franzen e o que é a comédia da raiva?”, pergunta Weinstein no início da introdução a este livro publicado em 2015, o ano de Purity. “A primeira pergunta é fácil. Franzen é talvez o mais conhecido escritor americano da sua geração” capaz de atingir os leitores mais sofisticados aos menos exigentes. E a segunda pergunta remete para a primeira, refere Weinstein, e é o objectivo do livro. A resposta à pergunta pode começar assim: “Profundamente incorporado em si mesmo (ali inculcado durante a sua infância e adolescência, e na sua experiência numa universidade de elite) está um céptico esquisito e corrosivo.”

É isso que alimenta a literatura de Jonathan Franzen, o rapaz do Midwest.

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O Midwest e a ira

É um rapaz do Midwest? “Sim, o que quer que isso signifique”, responde, consciente de já ter tantas vezes desmontado e voltado a montar as características, o preconceito, a imagem associada a ser-se do interior dos Estados Unidos nem que seja para dizer que é um rótulo como outro, cheio de falhas, excessivamente genérico. “Mas não sou o protótipo do rapaz do Midwest. Os meus pais eram muito do Midwest. Passaram todas as suas vidas no Missouri e no Illinois. Não creio que ser do Midwest tenha um significado, não creio que descreva qualquer atributo específico e que o que se possa dizer do Midwest não possa também ser dito em relação a certas partes da Austrália ou de Inglaterra. Acho que o Midwest é uma história que as pessoas da Costa Leste contam a si próprias, como Nova Iorque também é uma história que a gente do Midwest conta a si mesma. Se há alguma diferença? Acho que a minha infância se prolongou à maneira do Midwest quando fui para a Costa Leste. Mas estamos a falar do Midwest suburbano em relação à Nova Iorque urbana.” E que diferença é essa? “Na Nova Iorque urbana os miúdos são muito sofisticados e eu era muito pouco sofisticado. Permaneci uma criança até ter 18 ou 19 anos. Tive uma experiência traumática quando fui para a universidade com todos aqueles nova-iorquinos super-sofisticados que tinham muito pouca paciência para a minha inocência. Mas será que se pode dizer que o Midwest é um lugar mais inocente? No meu caso quer apenas dizer que a inocência durou mais dois anos. Não é ter 35 anos e ser inocente porque se está no Midwest. Não acho que haja diferença. Mas tenho um sentimento nostálgico que me permitiu ser criança por mais tempo, o que me arruinou junto dos meus colegas mas também me ajudou, e é uma das razões pelas quais me tornei escritor. Brinquei até tarde, até me interrogar: ‘Mas será que vou passar toda a minha vida a brincar?’ É de facto o que faço. Brinco, levanto-me e invento histórias.”

Nunca foi bem um sonho, explica. “Quando estava a terminar o liceu, achei que era uma coisa porreira de se fazer, ser apenas um escritor, ninguém me dizer o que tenho de fazer, não ter de ir para a escola para poder ser isso — apesar de gostar de escola —, ter tempo livre e inventar. E ainda por cima darem-me dinheiro por isso. O que é que havia para não gostar nesse trabalho?”

Nos subúrbios de St. Louis, onde cresceu, criou o centro do clã Lambert, a família à volta da qual Correcções é construído. “Sim, parte do livro passa-se em St. Louis, mesmo que St. Louis se chame St. Jude”, refere, descontraído, sem ira aparente mesmo quando diz que as coisas mudaram desde então. “O Missouri transformou-se num estado muito conservador. Era um estado que ia mudando de cor política, o chamando swing estate, mas tornou-se um estado de Trump de uma forma substancial. Continua a ter um senador democrata de que sou fã e que lê os meus livros, Claire McCaskill.” Dá uma gargalhada. “Mas o centro deste livro são uns pais muito conservadores e três filhos que vivem na costa. Os pais não aprovam o estilo de vida dos filhos e os filhos vivem frustrados com os valores conservadores dos pais. Foi há 16 anos. O modo como o país mudou? Essa divisão entre a América conservadora e a América costeira tornou-se muito mais pronunciada.”

Escreveu sobre essa divisão em Liberdade. “Aí temos uns brancos muito zangados no Upper Midwest, que se sentem deixados para trás, e há os liberais por outro lado, e tudo parece correr bem para eles; são os que têm o dinheiro. Os pobres têm os camiões e as armas. Eis a direita que elegeu Trump e Bannon. Ou seja, isso deixou de ser apenas um tema estético para se tornar uma realidade”, diz o escritor para voltar a sair do tempo e entrar numa dimensão mais universal, literária. “Essas questões estão lá porque as personagens têm as suas circunstâncias, mas Correcções é sobre aquele homem que está a perder a memória, o que significa ser demente. Isso não muda. Há o que muda e há o imutável. A experiência da demência em 1999 é muito como a experiência da demência agora”, sublinha, ao falar de Alfred Lambert, o patriarca, a personagem que mais se orgulha de ter criado, que como o seu pai sofre de demência e nesse processo se vira para o interior e para o que parece ser a impossibilidade de comunicação.

Batem à porta. A conversa tem tempo marcado. As horas em Lisboa estão contadas. Vai falar de literatura, do grande romance americano, da felicidade que é escrever e ler, de coisas de que gosta e de que não gosta. Gosta de falar em público, confessa. De gerir atenções. Sente-se à vontade. E a janela continua aberta e a atenção desvia-se para outro pássaro. Inevitável. As cidades estão cheias de pássaros e as pessoas não dão por isso, diz de outra forma, mais desenvolvida. No dia seguinte falará das espécies que se podem ver no Central Park em Nova Iorque. Continua a ter casa na grande cidade. Vive entre a Costa Leste e a Costa Oeste, em Santa Cruz, perto da baía de Monterrey. O rapaz do Midwest, como os filhos Lambert, converteu-se à costa e chamam-lhe escritor urbano. “É porque tenho uma noção romântica das cidades. As cidades atraem-me mais nos romances do que os subúrbios ou o campo. A cidade é um fluxo de energia. Os subterrâneos, os cruzamentos, as várias camadas. Estou sempre a ser estimulado. Eis um rosto que nunca vi antes, o que e que ele me sugere? Uma cultura no Leste do México? E está no metro de Nova Iorque! Tudo isso me entusiasma. As cidades trazem a diferença. Os subúrbios e a ruralidade não carregam essa diferença. Uma quinta será provavelmente muito semelhante à quinta seguinte. Mas isso também está a mudar e é interessante; o campo americano está a ficar muito mexicano. Andamos pelo interior do Ohio ou do Iowa e as estações de rádio são quase todas em espanhol. É fantástico. Mas a cidade enquanto ideal romântico atrai-me como romancista.” 

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