Jim Sheridan: o realizador é um padre que se sente como uma prostituta

Primeira edição do Encontro de Escrita para Cinema e Televisão em Português começou esta quinta-feira em Cascais com o realizador de O Meu Pé Esquerdo e Em Nome do Pai.

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“Escrever é súplica, como uma oração ou obediência”, disse esta quinta-feira em Cascais o realizador de O Meu Pé Esquerdo e O Nome do Pai, Jim Sheridan. O tema da sua palestra era o processo de escrita e ele lá foi, à escrita, mas vagueou um pouco por toda a parte, da religião à televisão, passando pelo VHS e pelas histórias de guerra de um realizador irlandês nos EUA. O primeiro A Quatro Mãos – Encontro de Escrita para Cinema e Televisão em Português começou esta quinta-feira e reúne mais de uma centena de pessoas em Cascais até domingo.

Aos 68 anos, Jim Sheridan teve quatro anos de intensa e aclamada produção – foi entre 1989 e 1993, quando os seus filmes irlandeses furaram no mercado norte-americano e o associaram para sempre ao actor Daniel Day-Lewis. É autor de O Meu Pé Esquerdo (1989, a sua primeira longa-metragem) e Em Nome do Pai (1993), mas também de O Boxeur (1997), todos protagonizados por Day-Lewis. Disse à audiência composta por estudantes de cinema, argumentistas e actores que gostava de ter falado com eles nesses anos de maior juventude, nos anos do VHS. Foi nessa altura que, conta, percebeu: “Escrevo, suponho, para um público mainstream, e aprendi isso a ver cassettes”.

Convidado pela Academia Portuguesa de Cinema para ser um de vários conferencistas num encontro essencialmente luso-brasileiro, mas também com representantes da América Latina, saltitaou entre temas. Sobre O Processo de Escrita, o seu tema para a audiência do Centro Cultural de Cascais, falou do trabalho em O Meu Pé Esquerdo, dividido de forma não pouco torturada com o argumentista Shane Connaughton, sobre a história de Christy Brown, que nasceu com paralisia cerebral, mas também de como desenhou a mãe de Brown tendo como protótipo a sua, e de como o seu pai foi o protótipo para Em Nome do Pai. Na estreia, o seu pai abraçou-o e disse-lhe ao ouvido que o amava. “Não lhe disse que o amava de volta. Afastei-o. Para ter a certeza de que ele o tinha dito”. Duas semanas depois, Peter Sheridan morria e essa tinha sido a última vez que o vira.

“Como guionista, sou um pouco conservador. Gosto da estrutura de três actos, sou algo obcecado com não deixar pontas soltas. A ideia é o mais importante, e isso leva-nos muito longe.” Nos anos 1980, mudou-se da Irlanda para Nova Iorque e estudou na Tisch School of the Arts. Já era dramaturgo em Dublin, mas foi aí, e quando comprou o livro “que toda a gente estava a ler”, Screenplay: The Foundations of Screenwriting, de Syd Field, que se encantou com essa trama narrativa. “Apesar de ter estudado Ionesco, Tchékov, Ibsen, não sabia nada sobre a estrutura de três actos”, que estabelece a intriga nos primeiros 20, 30 minutos, depois se foca na luta do protagonista para atingir seus objectivos, para depois o clímax encerrar com a resolução do caminho da personagem central.

“Sou obcecado com quem é o público e como me dirigir a ele. É como estar num primeiro encontro, sabemos se resulta nos primeiros momentos. Por alguma razão, percebemos nos primeiros 20 segundos de um filme”, exemplifica Sheridan, que acha muito difícil escrever para outros. “Eu escrevi para realizar. Neil Jordan escreveu para realizar”, enumera, referindo pela segunda vez na palestra o seu compatriota geracional. “Eu escrevo para o fazer”, explica, “para ser filmado, e muitas vezes não é legível”, admite.

“O meu caminho como realizador é um cruzamento entre ser um padre, tentar fazer algo profundo, mas sentindo-me sempre como uma prostituta”, dissera logo no início. Por várias vezes manifestou o seu desagrado perante o estado da indústria americana, que o acolheu durante muitos anos. Identifica um desequilíbro na estrutura de produção e nas formas de distribuição. É mais uma voz farta da Marvel. “O cinema americano é como uma redução. Está a reduzir tudo a um filme, que é um tipo de fato e que é o Capitão América”, critica, para fazer rir a sala. “Acho que é daí que vem Trump. Que vem Bush.”

Um aviso: “A estrutura de três actos está provavelmente a morrer agora, enquanto aqui estamos. Pela predominância da televisão, as histórias com finais fechados não têm o mesmo grau de empatia que costumavam ter”, lamenta. Já antes tinha mencionado o poder do pequeno ecrã, a que hoje na verdade já quer só chamar streaming, com particular poder evocativo na Irlanda da sua juventude. A chegada da televisão foi uma experiência familiar, um ordálio de montagens de antenas e igrejas – “os únicos arranha-céus da Irlanda” – onde o sinal embatia e fazia ricochete. “As únicas imagens que conhecia eram de vitrais e sobretudo de Cristo, Cristo na cruz. A televisão acabou com isso. Em 20 anos o poder da igreja desapareceu.”

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