Apontamento de política florestal

Portugal merece uma política florestal visionária e esclarecida, para ser levada a cabo por gerações sucessivas.

Como instalar uma rede de Serviços Florestais que cuide dos espaços de uso silvestre, públicos ou privados, em regime florestal, assegurando o correcto tratamento e exploração — com políticas de longo prazo, programadas para horizontes de 200 anos? Se é fácil publicar leis e dar subsídios, é difícil criar e manter serviços de campo operacionais disciplinados e produtivos, à altura de impedir que ecossistemas que demoram séculos a formar sejam reduzidos a cinzas em poucas horas.

A tragédia dos incêndios florestais, que persiste há décadas, expondo o caos no ordenamento socio-territorial, ainda não demoveu as indecisões. O investimento terá de ser elevado, a progressão dos trabalhos será lenta e os resultados, por excelentes que sejam, serão sempre considerados normais, não se prestando a ser notícia. Mas Portugal merece uma política florestal visionária e esclarecida, para ser levada a cabo por gerações sucessivas, dedicadas a uma obra monumental e interminável.

1. A calamidade dos fogos é acolhida com resignação e a atribuição da culpa ao “aquecimento global” e a “fenómenos naturais” confere uma dimensão ecuménica às causas, desvanece as responsabilidades e colhe amplos consensos.  

2. O cerne da questão está em saber se o Estado quer ou não instituir o uso silvestre/ florestal (abarcando, também, os espaços agro-silvo-pastoris) como uso imperativo, o que implica a configuração de um regime florestal aplicado a todo o território de uso silvestre.

3. O regime florestal que, esclarecidamente, assume o “uso florestal” como uso imperativo (lei que remonta a 1900 e 1901), nunca foi implementado de forma consequente, talvez por não ser compreendido na sua essência, como elemento de coesão e segurança socio-territorial.

4. O uso florestal imperativo legitima-se ao reconhecer, ao proprietário que não esteja nele interessado, o direito à expropriação com justa indemnização. Já existe um procedimento idêntico nos “planos urbanos” com efeitos registrais invocando a “imposição administrativa” e dando aos proprietários, dos terrenos envolvidos no plano, a possibilidade de escolha entre a expropriação ou a participação nos benefícios e encargos perequacionados.

5. O efeito dos fogos no comportamento do mercado fundiário nas zonas ardidas é merecedor de atenção. Os incêndios e, tão só, a elevada probabilidade de ocorrerem, lançam o desânimo, principalmente nos proprietários de pequenas parcelas, depreciando o valor do solo em benefício de procuras financeiramente robustas e com estratégia. Daí a delicadeza das operações que mechem no cadastro e nos direitos de propriedade e as desconfianças quanto ao destino dos prédios em resultado destas operações. A equação dos interesses que se movem na política florestal deve explicitar quem são os lesados e os beneficiados pelos incêndios florestais e neutralizar estes “benefícios”, o que, aliás, já é praticado com a interdição temporária de urbanizações em terrenos ardidos, o que não deixa de ser surpreendente pois subentende que, não fora o incêndio, podiam, normalmente, ser urbanizados! O que não é bem verdade. A legislação urbanística e dos solos em geral é pródiga nestes subentendidos e indeterminações. 

6. Por princípio, todos os espaços de uso silvestre deviam estar em regime florestal total (matas nacionais) ou parcial (terrenos particulares). O regime florestal alicerça-se na capacidade e disponibilidade dos Serviços Florestais do Estado para conduzir as “matas nacionais” e prestarem serviços e apoio científico e técnico às matas particulares. A investigação cientifica pura e aplicada, que compete à Estação Florestal Nacional (EFN), é fundamental. Sem este suporte, nenhuma política florestal pode esperar ter sucesso.

7. Quanto menos povoados forem os espaços florestais melhor, a floresta só ganha em ser um espaço recatado e posto à margem da população urbana. O turismo de natureza deve ser dirigido para parques florestais de uso múltiplo devidamente infra-estruturados e adaptados para receberem com conforto e segurança os visitantes, constituindo uma utilização urbana e turística em uso silvestre, considerada como excepção localizada e não como regra

8. Os terrenos baldios de uso silvestre, que representam cerca de 5% do território nacional (cerca de 500.000 hectares), carecem do apoio in loco a prestar pelos Serviços Florestais, sob pena de não conseguirem dispor da assistência técnica fundamental.

9. Os empresários florestais privados têm o direito de explorar os seus recursos respeitando o regime florestal, as regras técnicas de desbaste e de limpezas e os tempos de corte que só devem ocorrer depois de alcançados os estados de maturidade das árvores. Caso o empresário não tenha capacidade, ou interesse, para assegurar a exploração, deve vendê-la no mercado a quem esteja à altura de respeitar os preceitos e, em alternativa, ter o direito à expropriação com justa indeminização passando esses terrenos, do regime florestal parcial para o regime florestal total integrando-se nas matas nacionais. Os povoamentos arbóreos para produção de lenho nobre têm de chegar à maturidade. Se forem cortados antes do tempo há perdas elevadas. Este é um problema de economia nacional e de planeamento territorial.

10. Os terrenos rústicos em estado de abandono e pertencentes a proprietários desconhecidos que não respondem à chamada justifica-se que sejam integrados nas matas nacionais em regime florestal total. Esta integração deve ser feita respeitando os direitos da propriedade através de um ad perpetuam rei memoriam que servirá de base à negociação caso, futuramente, apareçam os legítimos proprietários, os quais têm duas opções:

a) Manter a propriedade aceitando a sua exploração e condução em regime florestal parcial;

b) Requerer a expropriação ficando os terrenos em causa, definitivamente, em regime florestal total;

Em qualquer dos casos, as parcelas são tratadas dentro do respectivo perímetro florestal constituído em sede de planeamento do território.

Diferente e incerta é a criação de um estatuto difuso de apropriação de terras avulsas abandonadas, disponibilizando-as para figuras associativas à margem das matas nacionais e do regime florestal total. Configura-se aqui a possibilidade destes prédios, a médio prazo, terem um destino incerto com tudo o que isto tem de experimental e atentatório dos direitos fundamentais da propriedade, onde se destaca o direito à expropriação com justa indeminização ao abrigo da declaração da utilidade pública, fundamentada, e do direito à reversão caso se alterem ou não sejam respeitados os pressupostos que legitimaram a expropriação.

11. A diversidade dos ecossistemas silvestres e das explorações florestais espelha-se nos custos e benefícios associados à sua gestão. A título de exemplo, vejamos o caso do Pinhal de Leiria que, com a dimensão de cerca de 11.000 ha (8900 de produção, sendo os restantes povoamentos de protecção, portanto sem cortes) explorado em talhões com cortes rasos finais e ciclos de 80 anos, proporciona receitas anuais da ordem dos 1,5 milhões de euros com a venda de lenho nobre. Não fora o incêndio de 2003 e a descapitalização das Matas Nacionais, este montante pode duplicar e a ele acrescem outras receitas da resina e de produtos resultantes de cortes culturais de limpeza e desbaste. O Pinhal de Leiria pode dar um rendimento bruto da ordem dos quatro milhões de euros por ano e esta sustentação financeira alicerçará a estabilidade da política florestal que a promove.

12. A produção de energia a partir da combustão de biomassa deveria estar vinculada às limpezas e desbastes dos espaços silvestres em Portugal e ter tratamento preferencial nas políticas das energias renováveis, contribuindo para rentabilizar o sector agro-florestal e reduzir importações. Note-se que a energia produzida a partir de biomassa tem uma “tarifa de regime especial” três vezes inferior ao da energia fotovoltaica. Acresce que as “limpezas de matos” não podem ser feitas com cortes a esmo. Esta operação de rotina é um trabalho especializado que requer critérios selectivos informados pela fitossociologia.

13. A política florestal é uma competência governamental, central e não municipal, local. Quando muito, os municípios podem ter uma acção supletiva neste domínio.

14. A disputa de poderes sobre o território alimenta confusões e conflitualidades envolvendo os PDM; PROT; Programas Especiais; Planos Florestais; a “Rede Natura 2000”; “Reserva Ecológica Nacional”; “Reserva Agrícola Nacional”; “Parques Naturais” e outras figuras e demarcações que se movem administrativamente num jogo de sombras que subverte a lógica do planeamento regional e urbano. A legislação da Reserva Ecológica Nacional (REN) “proíbe as acções de iniciativa pública ou privada que se traduzam em [...] destruição do coberto vegetal” conflituando com as operações silvícolas correntes e afirma também proteger “todos os ecossistemas do país”!  Lembremos que as “áreas protegidas”, parques e reservas estiveram retirados da alçada dos Serviços Florestais fragmentando e diminuindo a capacidade operativa do Estado com perda de saber e experiência. Hoje, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) é uma fusão não resolvida

15. Revisite-se a obra de mestres como Ruy Mayer que, no seu livro Noções de Hidráulica Florestal (1941), apresenta, com rara elevação, a teoria e a sua aplicação prática. Este exemplo de presença no terreno, laboriosa e culta, se for aplicado nos cerca de 6,5 milhões de hectares de solo de uso silvestre, convoca todas as frentes, públicas e privadas, para uma tarefa de relevância histórica na qualificação do usos e utilizações do solo e, consequentemente, na valorização da base económica e imagem de Portugal.  

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