Identidades assassinas? Que tal educar para a tolerância

O exemplo que os pais derem em casa é muito mais importante do que o livro de exercícios que reproduz preconceitos, mas não pensem que estamos no bom caminho se os livros das meninas só têm meninas e as apresentam a tratar de tarefas domésticas.

Todos os dias, e a toda a hora, vamos construindo a nossa identidade. O quem somos, o que fazemos, as coisas de que gostamos, o que vemos e o que escolhemos não ver posicionam-nos no mundo. E, muitas vezes, conduzem-nos a um posicionamento contra alguém ou contra alguma coisa.

É muito curioso ver como esta identidade se vai formando numa criança, que, em muitos aspectos, é uma folha em branco (sem vícios), mas, por outro lado, é muito cedo dirigida por preconceitos de quem as rodeia.

Lembro-me dos tempos de criança e de como a identidade geográfica, por exemplo, foi evoluindo, à medida que o nosso mundo ganhava escala. Primeiro, os jogos de futebol ou os concursos do festival da canção discutiam-se entre lugares (bairros): Pinheiro contra a Feira era um clássico com uma rivalidade ao nível do conflito israelo-palestiniano. Mais tarde, eram as corridas entre freguesias (Ataíde vs. Real), qual clássico FC Porto-Benfica. E depois já eram os jogos de voleibol entre concelhos, seguidos pelas discussões Norte vs. Sul, até que um dia damos por nós em Espanha a fazer a defesa dos portugueses ou no Egipto a assumir o espírito europeu. Se um dia encontrarmos um extraterrestre, passaremos a tarde a exaltar as qualidades da Terra e as virtudes do ser humano.

Não me entendam mal. Ter identidade é inevitável e naturalmente sentimo-nos próximos das pessoas que partilham os nossos gostos ou valores. O problema é quando essas identidades nos conduzem a uma visão assassina, preconceituosa ou distorcida da realidade. Lembro-me muitas vezes do livro Identidades Assassinas, do franco-libanês Amin Maalouf, que já li há muitos anos, mas que é um tratado de tolerância. “Somos todos uma nação, e não podemos resolver problemas se não nos virmos assim: uma nação com muitas culturas. Quando começarmos a pensar dessa forma, entramos no que chamo o verdadeiro princípio da história”, disse Amin Maalouf numa entrevista ao PÚBLICO em 2009.

É curioso (e de alguma forma assustador) como as crianças começam cedo a notar as diferenças entre elas. Rapidamente falam do amigo que tem a pele castanha, da amiga que tem um sotaque esquisito ou do menino que não fala bem e faz xixi na fralda. O que prova que precisamos desde cedo de educar para a tolerância e de explicar que tanto faz ter pele castanha como cor de rosa e que vale tanto falar português de Portugal como do Brasil.

Confesso que já estou um pouco farto da polémica sobre os manuais da Porto Editora. Chamo só o tema para destacar que todos os detalhes contam e que a forma como mostramos o mundo às crianças vai ser rapidamente interiorizado por elas. É claro que o exemplo que os pais derem em casa é muito mais importante do que o livro de exercícios que reproduz preconceitos, mas não pensem que estamos no bom caminho se os livros das meninas só têm meninas e as apresentam a tratar de tarefas domésticas.

Um dia destes uma educadora contava-me como nas brincadeiras da escola um miúdo se sentava no sofá e pedia à “mulher” que lhe trouxesse uma cerveja. É fácil imaginar onde é que ele ouviu isto. É fácil perceber que modelo de relação lhe entrou na cabeça. E é fácil entender como reagir: vamos educar as nossas crianças para o respeito pelos outros, para a igualdade e, acima de tudo, para a tolerância. Mesmo quando ficamos sem aparente resposta para explicar a maldade do atirador que matou dezenas de pessoas em Las Vegas ou não conseguimos entender a falta de decência de quem levou o peluche esquecido no banco do jardim. Por que é que se mata assim? Por que é que se rouba o macaquinho de peluche de uma criança?

P.S. A crise na Catalunha é um tema demasiado vasto e complexo para este espaço, mas tudo seria mais fácil se houvesse tolerância e as identidades beligerantes dessem lugar às identidades cooperantes.

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