Uma actriz, uma bailarina e o futuro do interior de Portugal

Canas 44 tem direcção artística de Victor Hugo Pontes e parte das vivências de Leonor Keil e Rafaela Santos enquanto habitantes de Canas de Senhorim para uma reflexão maior sobre o abandono de uma parte do país.

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Nelson Garrido
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Esta história passa-se na vila de Canas de Senhorim, concelho de Nelas, distrito de Viseu, mas poderia passar-se em qualquer outro lugar do interior de Portugal. Está um dia quente e abafado, mas, salvo os velhos que conversam à porta dos cafés, não há vivalma nas ruas. Meia dúzia de carros pontilham a vila aqui e ali e servem para suprir a falta de transportes, mas fora isso estamos numa outra dimensão em que o tempo se arrasta pachorrento. Leonor Keil e Rafaela Santos conhecem esta vila melhor do que ninguém. A bailarina da Companhia Paulo Ribeiro fixou-se aqui durante 17 anos, redescobrindo as raízes da sua família na terra e lançando as suas próprias sementes até ao dia em que partiu para a cidade de novo. Rafaela traçou o percurso inverso. Tudo começou há 11 anos, quando veio passar uns tempos a Canas para desenvolver um projecto com Leonor. Desde aí, nunca mais abandonou a quietude da vila. É a partir das memórias e das experiências das duas artistas que surge Canas 44, um espectáculo do encenador e coreógrafo Victor Hugo Pontes cuja antestreia está marcada para esta quinta-feira, no Auditório do Quartel dos Bombeiros Voluntários locais.

De um lado, uma bailarina que sempre teve um pé no teatro, do outro uma actriz que sempre guardou a dança contemporânea perto do coração. O desafio era fazer com que as duas se encontrassem a meio num espectáculo que pudesse casar as duas artes performativas. Victor Hugo Pontes foi o mestre de cerimónias e trabalhou com Leonor e Rafaela para construir uma peça de teatro que se serve das suas biografias para falar do despovoamento do interior e do abandono e do isolamento que o habitam. “Interessou-me explorar não só o lado de quem vai embora, mas esta esperança de que ainda há gente que sai para o interior. Não é propriamente a norma ou o padrão, mas ainda vai havendo algumas excepções”, explica.

Assim que chegou a Canas, Rafaela Santos começou a cultivar uma relação singular com a vila e com as pessoas, tendo fundado com Fernando Giestas a Amarelo Silvestre, companhia de teatro ali residente. A actriz e encenadora confessa que a tarefa de levar o teatro à comunidade tem sido “uma conquista lenta”, já que nos primeiros anos os trabalhos eram mais facilmente mostrados noutras partes do país do que na própria vila. “Há dois anos começámos a ter um contacto mais directo com a comunidade infanto-juventil e adulta ao fazer alguns ensaios abertos e cursos de teatro”, conta Rafaela, referindo que “há muita vontade e sensibilidade das pessoas em concretizar projectos”.

“Quando aqui cheguei senti que os amigos de Lisboa iam esquecer-se de mim, que nunca mais ia ser convidada para nada”, atira a certa altura na peça, passando de imediato a enumerar com entusiasmo toda a flora e toda a fauna que a rodeia. “Hoje vivo numa casa onde respiro”, afirma com toda a certeza em cena. Leonor Keil também já foi feliz em Canas de Senhorim, ou não fosse esta uma vila que faz parte da história da sua família. O avô, o arquitecto Francisco Keil do Amaral, nasceu e viveu em Canas até aos 16 anos, e há inclusive uma rua baptizada em sua homenagem (exactamente esta em que a peça tem esta quinta-feira a sua antestreia). Foram quase duas décadas passadas entre Canas e Viseu, entre casa e trabalho, que chegaram ao fim quando os filhos entraram na adolescência. “Senti que o meu tempo aqui tinha esgotado, porque cheguei a um ponto em que, enquanto artista, precisava de mais alimento que já não tinha aqui”, reconhece. É esse o desalento a que dá voz no espectáculo no momento em que desabafa: “Tenho dentro de mim sonhos imensos que não podem ser concretizados aqui."

O mapa do desaparecimento

Em Canas 44, Victor Hugo Pontes procura abordar “o mapa do desaparecimento, o que existia e o que já não existe”, e fá-lo através de duas vozes dissidentes que se encontram em palco e que encarnam a partida e a chegada, a melancolia e a tranquilidade de viver no interior. “Interessava-me falar de um lugar que não é especificamente Canas, é um lugar que pode ser em qualquer parte, um lugar em que cada vez existe menos gente”, clarifica o director artístico, estabelecendo o paralelo com À Espera de Godot, de Samuel Beckett, “dado que é como se estas personagens estivessem à espera de alguma coisa ou de alguém que há-de vir”.

Para os menos de cinco mil habitantes de Canas de Senhorim, é fácil distinguir quem vem de fora da terra. “Vais na rua e as pessoas perguntam ‘olhe, mas o teatro é a que horas?’ e ‘quanto é que se paga?’, porque toda a gente sabe que somos do teatro”, refere, recordando o primeiro contacto com um local que se ofereceu para lhe mostrar a vila. “Na altura disse-me: ‘Aqui não há monumentos, não há coisas para ver, aquilo que te vou mostrar são as pessoas’, e eu comecei a aperceber-me de que os lugares são as pessoas."

E se Canas 44 é um espectáculo que se foca numa problemática transversal ao interior do país, o seu carácter localizado celebra não só as histórias de vida das duas artistas em palco – e a capicua que assinalam este ano – mas também os costumes da vila que lhe dá nome. “Existe uma cidade subterrânea aqui debaixo”, atira Leonor a dado momento, aludindo às minas de urânio que têm 500 metros de profundidade e que serviram para a construção das bombas nucleares. “O cenário foi muito inspirado nas minas, porque o carvão se relaciona com a sujidade do que vai ficando e da contaminação que as vai atingindo e que tem a ver também com os problemas que a radiação causou à população”, explica Victor Hugo Pontes.

O espectáculo faz ainda menção aos fornos de ferro fundido que empregavam muitos canenses e à forte tradição de Carnaval que ali se perpetuou. Todos os anos, os bairros rivais Paço e Rossio encontram-se no centro da vila para se enfrentarem num concurso em que cantam ao desafio sem a avaliação de um júri. “Cada bairro desliga o seu sistema de som e o concurso é feito sem amplificação para ver quem é que canta mais alto ou quem é que persiste”, conta o coreógrafo, que se inspirou numa fotografia de um Carnaval de Canas para trazer a palco dois cabeçudos construídos por Lira Amaral, artista plástica e mãe de Leonor Keil.

Canas 44 acaba por ser um regresso à infância e a um lugar onde se brincava na rua com pauzinhos e pedrinhas; um lugar onde tudo era mais simples e puro. Ao mesmo tempo, é uma súplica em nome do interior e das suas gentes que caem cada vez mais no esquecimento. O espectáculo estará no Centro de Arte de Ovar a 28 de Outubro, no Festival Y#13 (Covilhã) a 29 de Novembro e no Centro de Artes do Espectáculo de Sever do Vouga a 2 de Dezembro. Posteriormente, integrará o ciclo Portugal em Vias de Extinção no Teatro Nacional D. Maria II, onde estará em cena de 25 a 28 de Janeiro de 2018.

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