Leonor Keil e Viseu

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Houve um tempo, inicial, do regresso de Leonor Keil a Viseu, em que temeu cair no esquecimento enquanto bailarina

Há solares, heranças, paixões proibidas, férias de infância nesta história, na qual até o hino nacional entra. Mas há sobretudo um teatro, a coincidência que trouxe a bailarina Leonor Keil à geografia da família, que fez sua. Entre Canas de Senhorim e Viseu. Andreia Marques Pereira (texto) e Adriano Miranda (fotos)

Uma só estrada liga Canas de Senhorim a Viseu. E isso pode ser uma angústia. "Rodo a chave do carro e é sempre para lá e para cá." Em Lisboa era diferente: "Se apanhava trânsito aqui, fugia por ali; se aqui havia sinais, seguia por ali". Por isso, quando chegou, Leonor Keil tentou descobrir outras estradas, apenas para descobrir que eram muito piores. Agora, depois de 13 anos de vaivém constante, a bailarina acha que o carro já tem sensores, que faz a viagem sozinho. E isso liberta-a. Vê a cor do céu, as nuvens, as estações que chegam e partem. Ouve mais rádio do que nunca e chega mesmo a parar na floresta para escutar algo que a interesse mais. Está em casa, entre Canas e Viseu.

Mas sabe que a casa poderia ter sido outra. Porque se solares, heranças, paixões proibidas, férias de infância e até o hino nacional se misturam nesta história, o ingrediente principal é a coincidência, muita, que trouxe Leonor Keil à geografia da família, familiar apenas dos verões (ou carnavais) de outros tempos.

Viseu era a "grande" cidade na órbita da qual gravitava (e gravita) Canas de Senhorim, onde o bisavô se instalou na casa herdada. "A família era de Santar", conta. "Ainda noutro dia estava a falar com a minha mãe e chegámos à conclusão de que apenas os meus filhos são canenses." Sempre pensou que o avô ali tinha nascido; afinal, o avô, o arquitecto Francisco Keil do Amaral, nasceu em Lisboa. Veio, contudo, pequenino para Canas, onde fez a primária; depois voltou para a capital, mantendo muita afeição por Canas, pela casa. "Vinha todo os verões, nós continuámos com a tradição."

Claro que a tradição não é o que era e parte da família fez o percurso inverso. Os pais de Leonor vieram há 18 anos, há 13 veio a bailarina. Não por Canas, onde acabou por se instalar, não pelos pais com quem partilha a quinta da família, mas por um teatro: o Teatro Viriato de que o seu marido, o coreógrafo Paulo Ribeiro, se tornou director - Paulo veio com a companhia que leva o seu nome, a mulher e uma filha por nascer.

Assim, Leonor, com o seu percurso "um pouco pipoca" (Açores, onde nasceu, Lisboa, Moçambique, Lisboa), acabou num território onde se cruzam histórias da família. E não, o piano do trisavô Alfredo Keil, compositor de A Portuguesa, não está na casa da família - um dos mitos que sobrevivem na terra. "Acho que ele nunca veio sequer a Canas, ou se sim foi de passagem."

Os pais de Leonor terminaram um ciclo em Lisboa e recomeçaram outro em Canas, na casa da família que na verdade são duas onde funciona a associação cultural Casas do Visconde, de portas abertas à comunidade. E a bailarina trocou o grande palco lisboeta por um dos mais pequenos do país: os oito metros de boca de cena do Teatro Viriato, residência da Companhia Paulo Ribeiro (CPR) à qual pertence.

É a sua casa artística e vêmo-la aí a improvisar movimentos para o fotógrafo. "Não sei o que fazer, nunca sei. Fico envergonhada", diz. Não ficará tanto alguns andares acima, na sala de ensaio da CPR, branca e transparente no seu semicírculo envidraçado sobre a cidade de Viseu - do seu terraço vemos a Sé no alto e até lá um mar de telhados, aos nossos pés a rua e a cervejaria Casabalanca onde almoça amiúde. Do mesmo lado do teatro, algumas portas abaixo, está a Lugar Presente, escola artística que é a menina dos olhos da bailarina. Já lá iremos.

O teatro bebé

Deixamo-nos, por enquanto, ficar no foyer do teatro, rés-do-chão com a rua a passar para lá das grandes portas. Quando veio para Viseu-Canas, Leonor percebeu rapidamente que este teatro seria o outro bebé da família. Esteve fechado 40 anos, a servir como armazém, foi restaurado e abriu em 1999. "O Paulo propôs um projecto para o Teatro Viriato e acabou por ser aceite." Ela estava grávida da Catarina (o Ivo veio três anos depois) e o Paulo a montar o teatro, do qual se mantém director. "Cada um com o seu bebé. Temos dois filhos com a mesma idade, costumamos dizer."

Catarina já diz que quer ir para Lisboa, o teatro já é finalmente de Viseu. "Se nos formos embora, se este teatro fechar, se a companhia e o Lugar Presente acabarem, as pessoas já vão sentir falta, já nos consideram da cidade", afirma Leonor, depois de explicar que não foi sempre assim. "Fomos bem recebidos, mas sempre com um pé atrás", avalia, o que até considera "inevitável". Era necessário um período de adaptação para que a cidade percebesse ao que vinham (vieram colocar Viseu no mapa cultural). "O caminho foi sustentado, respeitando o ritmo da cidade, percebendo o que era preciso, como é que as pessoas reagem, como é que funcionam..."

Foi em 2003 que Leonor decidiu tirar a CPR do teatro e levá-la às escolas, com um espectáculo para crianças: durante três anos foram saltimbancos e essa foi uma experiência muito recomendável, com toda a componente de formação de públicos.

Ao mesmo tempo começaram aulas de dança no teatro: ao fim de dois anos já não cabiam ali. Com o apoio da autarquia, alugaram um espaço, mas rapidamente perceberam que queriam ser mais do que um estúdio de dança. "Queríamos deixar algo a cidade. Ser uma escola oficial." Cinco anos de burocracias e conseguiram-no: o Lugar Presente oferece desde este ano o curso básico de dança e o curso vocacional de dança, em articulação com duas escolas da cidade; ao fim do dia, continuam as aulas livres.

O edifício amarelo torrado fica umas portas abaixo do teatro. Todos os dias Leonor lá vai (excepto quando a CPR está em criação e passa o dia inteiro na sala de ensaios) - a escola é a sua actual razão de ser. "Não tenho previsões de futuro. Mas uma coisa é certa, gostaria que esta escola ficasse, independentemente de tudo." Pela escola já passaram três alunos que seguiram os estudos, inclusive na Escola Superior de Dança onde por estes dias também Leonor tira licenciatura, "para dar continuidade ao projecto". "São as novas "regras do jogo" do mundo actual..."

Na Viseu actual, os bailarinos da CPR (que entretanto deixou de ter elenco fixo) já não fazem parar o trânsito, como nos tempos da bailarina estrangeira com a "saia de vaca, os collants estranhos e as botas amarelas". "Era engraçadíssimo ver num sítio meio cinzentinho os alemães, que são muito coloridos e grandes e esquisitos", ri-se. Por estes dias, os viseenses já estão mais avisados: "Se é esquisito, é do teatro, faz parte da paisagem".

A Feira de São Mateus

Uma paisagem que tem perdido moradores no centro histórico -"a rua Direita estava completamente ocupada e agora está quase abandonada. É muito triste porque o centro é alma das cidades" - ao mesmo tempo que recuperou outras zonas, nomeadamente à beira-rio. O rio Paiva já foi muito poluído e agora tem relva nas margens; há também a emblemática Cava de Viriato, que "era um buraco" e agora é um "belo passeio", e o parque do Fontelo, cheio de pavões e árvores, actividades desportivas e o Solar do Dão.

Das janelas da sala de ensaios, Leonor Keil indica ainda o local da feira semanal, à qual quando chegou não faltava, e da popular Feira de São Mateus (no final do Verão), de que é presença assídua com os filhos - "O Paulo detesta". Mas a feira faz parte das "muito boas memórias" que construiu durante parte da infância e adolescência entre Canas e Viseu.

Era um ritual, a ida à feira, nesses períodos em que as férias se faziam na casa do bisavô visconde de Pedralva: estava vazia, vinha a família (grande, são sete irmãos), enchiam-na e iam embora. Pelo meio, muitas visitas de amigos - "temos casas grandes por herança e há sempre amigos que vêm porque há espaço" - e com elas "muitas festas". "Essas férias eram isso." E as viagens de Lisboa até Canas. "Saíamos de manhã e chegávamos ao final do dia, todos partidos", conta, "e tínhamos de parar sempre, já não sei onde, por um tal de arroz de tomate e pastéis de bacalhau. Sabia muito bem".

Agora, de Lisboa até Canas são só duas horas de viagem. "É assustador como tudo mudou", reflecte, "não passou assim muito tempo". Mas ainda bem, porque vai a Lisboa sempre que aceita um convite de trabalho. Mais agora do que quando os filhos eram pequenos e a vida em Viseu ainda era um mundo novo, de onde receou nunca mais sair, diz, entre risos, caída no esquecimento enquanto intérprete independente.

Entretanto, percebeu (e esforçou-se para) que não e é comum passar um, dois meses em Lisboa a trabalhar, sendo que a primeira semana é para esquecer. "Primeiro que eu me adapte ao não-silêncio... Adoro silêncio, adoro o escuro e não encontro isso. É uma angústia muito grande."

Em Canas-Viseu tem tudo isso em abundância. Por exemplo, no Verão, a barragem da Aguieira esconde sítios "onde se encontra silêncio e ninguém. Vamos de barquinho para uma ilha e fica-se ali o dia inteiro a acharmos que somos o Robinson Crusoe". Com o bónus da natureza - a sua religião. Precisa de ter muitos animais (vive entre quatro cães incluindo um "cãomões", com um olho apenas, galinhas, patos, pombos, pavões, burros, uma égua, e a "mais que tudo", a gata Mel), sentir os cheiros, estar perto das árvores, regar e plantar e ficar com gretas nos dedos. E delicia-se com vistas como a da árvore com que se cruza no caminho entre Canas e Viseu e que, quando a hora é a certa, parece que tem luz e chega a encandear. "É lindíssimo."

Tem tempo para estes "pequenos pormenores"" e, no entanto, Leonor Keil só se sentiu em casa quando percebeu que tinha ainda menos tempo aqui do que em Lisboa, tal o número de projectos em que se envolveu. Cujas sementes já começaram a crescer. "Em Viseu isso vê-se e vive-se. E é muito bonito."

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