O interior pode ser uma festa

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Paulo Pimenta

É uma cidade fora de si, esta em que Viseu (e arredores: Mangualde, Nelas, São Pedro do Sul e Tondela) se transforma a partir de amanhã. Mais do que um festival de artes performativas, o Viseu A é uma geografia alternativa para um país que não se vê da auto-estrada — e um convite à extroversão activa, poética e política, de quem lá ficou

A estrada faz uma última curva e inclina-se para a direita junto à placa que aponta para os “banquetes, baptizados, casamentos” do Café Salva-Almas (sem dizer nada acerca das azeitonas e das pataniscas em cima da mesa e do que havemos de encontrar na cave, para que a melhor parte disto seja surpresa). Numa das cadeiras de plástico da esplanada, de frente para a clareira onde daqui a dois dias Manuela Barile, uma artista italiana que veio engravidar a esta pequena aldeia de São Pedro do Sul, vai estrear uma performance-instalação sonora inspirada numa lenda local e nos braços abertos destes castanheiros centenários, o senhor José Almeida, 80 e tal anos “a salvar almas”, brilha dentro de um colete reflector. “Também há notícias onde não há ninguém, não é?”, pergunta-nos sem esperar pela resposta que sabe que é sim, porque lá em cima na serra, onde não há mesmo ninguém a não ser ele, está sempre a encontrar coisas — sobretudo, está sempre a encontrar pedras, que entretanto transformou numa floresta de esculturas e num complexo de capelas (vai na segunda) para que toda a gente saiba (“Se não me sair para as mãos ninguém pode saber, não é?”) o que se passa “cá dentro”.

Dentro dele, quer o senhor José Almeida dizer. E dentro, bastante dentro, deste país de que nem sempre temos notícias, porque não se vê assim muito facilmente das auto-estradas, mas onde Manuela Barile e Luís Costa, os directores da associação Binaural/Nodar, fundada em 2004 para promover a exploração e a pesquisa no domínio da arte sonora experimental, vieram viver e ter filhos. Ainda lá estavam, dez anos depois, quando os programadores Madalena Victorino e Giacomo Scalisi foram ter com eles, tal como foram ter com várias centenas de outros artistas e de pessoas anónimas da região, para os implicar no festival que a partir de amanhã se instala nas ruas e nas clareiras de Viseu e de quatro cidades vizinhas (Mangualde, Nelas, São Pedro do Sul e Tondela) excepcionalmente ligadas por autocarros. Já lhes tinham pedido isso no ano passado, quando por encomenda de Paulo Ribeiro, director do Teatro Viriato, o Viseu A teve a sua primeira festa de apenas um dia — este ano são nove, a começar daqui a umas horas, à meia-noite, quando as Histórias de Terror escritas pelos quatro dramaturgos da Amarelo Silvestre, companhia de teatro “improvavelmente” sediada em Canas de Senhorim, começarem a passar na TSF e na Rádio Escuro, e a acabar às 21h do próximo dia 1 com a Tora Tora Big Band. “A festa é uma dimensão muito importante no Viseu A, o convite para sair à rua também, no sentido mais profundo do termo. Este programa foi construído em diálogo com os artistas da região, que nesse sentido são também programadores do festival — tal como os comerciantes da Rua Direita que está moribunda, os ciganos de Nelas que continuam à margem da cidade, e o senhor José Almeida que não quer sair da sua serra. Foi com eles que descobrimos as questões que é preciso equacionar”, explica Madalena Victorino. Por exemplo: “O destino do pequeno comércio que interrogamos na instalação Rua Direita Que Finalmente Se Entorta, dando uma vida estranha e fenomenal a 23 lojas do centro de Viseu, e nas histórias do Rádio Drama, escritas para serem ouvidas na Casa da Sorte, na Foto Batalha ou no Cabeleireiro Monteiro; a integração das minorias que é o drama neste Romeu e Julieta aparentemente impossível com ciganos e não-ciganos; o envelhecimento da população que A Voz do Rock tenta contrariar pondo um coro de utentes de lares de terceira idade a cantar Heróis do Mar e Ornatos Violeta; e o lugar que o teatro pode ocupar no mundo, muito literalmente visado por estas Histórias de Terror que vão entrar nas casas das pessoas, nos quartos das pessoas, nos sonhos das pessoas. Acreditamos que a responsabilidade dos artistas perante a comunidade não é só poética, também é política, e esperamos que estes espectáculos permitam ao Teatro Viriato alavancar questões e relações.”

A desenvolver

Para entrarem na casa das pessoas, histórias como as que Fernando Giestas, Jeanne Waltz, Jorge Palinhos e Sandra Pinheiro escreveram tiveram primeiro de sair do lugar onde normalmente acabam, o palco de um teatro. “Entendo que a vocação de um teatro municipal não é só trabalhar dentro de portas, é também ir para a rua, ter uma política de extroversão virada para o exterior. Sempre tivemos essa vontade e este ano, com mais parceiros, conseguimos dar este pulo enorme que nos permitiu não só sair das portas do Teatro Viriato como sair das portas da cidade”, explica ao Ípsilon o director do Teatro Viriato, principal motor do Viseu A. O programa montado para os próximos nove dias, diz — 25 espectáculos, muitos dos quais produções próprias construídas de raiz para terem a sua estreia absoluta no festival —, corresponde “a três ou quatro meses de programação do Teatro Viriato” e por isso é impossível de replicar anualmente, mas Paulo Ribeiro gostaria de encontrar um Viseu A de dois em dois anos. “São meses de trabalho em espectáculos completamente artesanais, feitos com as mãos, e nalguns casos irrepetíveis — trazer tudo de fora seria mais fácil, menos moroso e menos arriscado, mas também seria menos produtivo. Só que num teatro desta dimensão, com uma equipa desta dimensão, é levar tudo ao limite. É preciso respirar antes de voltar a fazer. Nunca mais voltar a fazer seria morrer na praia, tendo em conta que há aqui muitos enunciados a desenvolver”, argumenta.

Foi para desenvolver a relação continuada com um lugar, a aldeia de Nodar, e com os seus habitantes que a Binaural quis que uma das suas contribuições para o festival — há outras, como a peça A Cidade de Mateus: Uma Campanalogia Viseense, que Luís Costa compôs para 12 sinos de sete igrejas de Viseu e que terá estreia a 31 — fosse um encontro com o senhor José Almeida e com o seu duplo São Macário, “um eremita que sobreviveu a comer bagas e gafanhotos depois de matar os pais por engano e que está na origem de um culto local”. Macário, a instalação-performance que Manuela Barile criou para o Viseu A, incorpora excertos da lenda associada e de textos religiosos paralelos, mas também as “meias palavras” do senhor José, que alguns artistas residentes da Binaural em ocasiões anteriores acompanharam nas suas deambulações pela serra. “Ficou sempre a ideia de um dia fazermos alguma coisa com ele, e depois de um ano em que nos dedicámos à relação entre o som e a religião fazia particular sentido”, diz Luís Costa. Na clareira em frente ao Café Salva-Almas e às caves onde o senhor José esculpiu as suas duas primeiras capelas (“Não descanso sem fazer outra”), essa paisagem sonora, amplificada por colunas escondidas dentro dos castanheiros, há-de cruzar-se com os sons da natureza e das concertinas que vão chegar a seguir, para o piquenique de coelho assado, presunto e pão-de-ló. “Aqui”, conta o presidente da Binaural, “o sagrado e o escabroso andam sempre lado a lado, e é por isso que depois da missa as pessoas comem quase até rebentar”.

Acreditar

A 80 quilómetros dali, na EB 2,3 Dr. Fortunato de Almeida, em Nelas, Graeme Pulleyn ensaia os nove miúdos do grupo de teatro da escola que hoje e amanhã farão o seu primeiro espectáculo profissional na Praça do Município. Com mais de 120 participantes — entre o grupo de adultos, o grupo de ciganos, o grupo de teatro amador, o grupo da escola secundária, o grupo do curso de Turismo, o grupo de músicos e a Banda de Metais de Santar —, Romeu e Julieta é a maior e mais imprevisível produção do Viseu A. Cinco minutos na sala de ensaios e ficamos dentro da história: “A História de Romeu e Julieta/ De Julieta e Romeu/ Ele era cigano/ Ela não/ Não vai dar certo/ Ela da casa de pedra?/ Ele da casa de pano?/ Era bom de mais/ Era bonito de mais/ O mundo não vai deixar/ Os pais não vão deixar/ Nunca vai dar.”

A mais de um mês da estreia, quando o Ípsilon aparece para espreitar, o Romeu e a Julieta de Graeme Pulleyn ensaiam separados: ela na escola, ele no acampamento (a taxa de absentismo escolar da comunidade cigana “é esmagadora”, nota Madalena Victorino), um acampamento que à tarde pára (mas tivemos sorte: houve dias em que tinha havido “zaragata entre famílias” e o encenador não encontrou ninguém com quem trabalhar) para assistir às cenas em que Daniel, o herói da história, pega na guitarra e “fica um bocadinho a tremer”. 

“Cada grupo tem os seus horários e as suas rotinas e por isso a equipa vai ao encontro dos vários grupos onde eles estiverem — é uma tournée. Fomos descobrindo de que maneira podíamos funcionar, o que é que era mais confortável para cada um. E aqui é muito normal que os ensaios se transformem numa festa com guitarras e casais a dançar. Mas claro que chegar a este nível de compromisso não foi fácil”, explica Graeme, que esta tarde não vai pedir “nada de especial” ao seu grupo de rapazes. Também faz parte do trabalho, isto de receber jornalistas, e o senhor Ramos, patriarca desta comunidade de cerca de 60 pessoas, está mais do que habituado a sentar quem vem de fora na sala, que também é cozinha, da casa que construiu “há 20 e tal anos”, nas costas da cidade. Aproxima a cadeira, começa a contar: “Vieram-me cá perguntar se podíamos fazer um teatro e eu disse que sim, que era bom para nós, para sermos bem vistos aqui. E está a ser bom, está a ser muito bonito. Arranjei o grupo e ainda agora, quando dou pela falta de um, vou buscá-lo para o grupo estar completo. O Daniel ficou o Romeu porque é o moço mais novo, tem 17 anos. A Irenia também dava uma Julieta perfeita — se não fosse casada.” 

É uma história bonita, concorda o senhor Ramos, mesmo que o Romeu seja cigano e ela não. “Não tem acontecido, mas então não podia ser na vida real? É normal. No tempo mais antigo era mais difícil, porque as pessoas não tinham cultura e era mais fechadas, mas agora todo o mundo convive no dia-a-dia, vai à escola, aprende a ler”, continua. Dos seus cinco filhos, todos estão casados: “Muitas vezes são prometidos logo desde pequenitos pelos pais, quando estão com uns copos, mas se não gostarem um do outro não são obrigados.”

Lá fora, o Romeu muito tímido que está a nascer em Daniel cora quando nos aproximamos com perguntas (“Ele tem vergonha de tudo, até de namorar a Julieta; quando a vê, encolhe-se todo”, diz o patriarca Ramos) e deixa a mãe falar por ele: “Já o tinha imaginado actor, já. Imaginar até imaginei de mais. Ele quando andava a estudar dizia que queria ser polícia, mas não estudou o suficiente. Agora que é actor, pode ser que consiga ser polícia numa novela.”

A mãe do Daniel pode estar a sonhar demasiado alto, mas é um bocado para isso — para que quem participe e quem vier ver acredite que a transformação é possível — que Madalena Victorino e Giacomo Scalisi trabalham, em Viseu ou nas outras periferias do país por onde têm andado. “Este Romeu e Julieta não vai salvar a comunidade cigana, mas é um encontro com uma população mais distante e mais difícil de convocar que esperamos que seja duradouro. Tal como a Rua Direita Que Finalmente Se Entorta não vai salvar o comércio tradicional, mas pode ajudar a ver de outra maneira a loja que já vem do avô e sempre esteve ali quietinha mas afinal daqui a uns dias vai ser salão de baile. Há grandes cruzamentos, alguns invisíveis, que fazem do Viseu A não só um programa lúdico e entusiasmante mas também um agente de mudança de mentalidades”, raciocina Madalena.

Talvez um dos melhores sítios para ver essa mudança a acontecer seja no Quartel da Paz, onde Ana Bento tem passado as manhãs a ensaiar, inspirada pelo projecto americano Young@heart, o grupo de 20 idosos que amanhã no Cine-Teatro Municipal de Nelas e dias 31 e 1 no Museu Grão Vasco de Viseu será uma banda rock. Chegam de luto ou de muletas, vindos talvez de mais uma consulta ou do funeral da irmã, mas não protestam mesmo que o alinhamento comece justamente pela canção que menos gostem, essa em que “a vida é como uma chiclete/ que se devora, mastiga e deita fora/ sem demora”. 

Foi “uma evolução lenta”, admite Ana Bento, mas num certo sentido também espectacular, “tanto a nível musical como a nível social”: “Neste momento, parece-me que já têm orgulho em relação à família, e em relação aos amigos do lar que não arriscaram vir. Mas desde o início que lhes digo isto: se fosse fácil, não valia a pena.” E vale a pena, garante Georgina, 83 anos, que está a “gostar de tudo”. “O que me está a meter mais confusão é aparecer depois diante de muita gente, mas é normal: é o primeiro espectáculo da minha vida e se não sair melhor sai pior.” Tal como para ela, “o compromisso de vir aos ensaios passou a estar à frente” para Celso, que, perto dos 85 anos, aprendeu a gostar de Jorge Palma e não falta mesmo nos dias em que tem os seus “grandes ataques de bronquite asmática”. 

Muito longe dos fados que Georgina passou uma vida a ouvir em Angola (“Uma vez até fiz 700 quilómetros de Luanda a Nova Lisboa só para esse efeito”), o ensaio acaba com uma canção dos Ornatos Violeta e ela rocka. Rockam todos. 


O Ípsilon viajou a convite do Teatro Viriato

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