O encontro com o mundo enquanto se espera um engate

Paul dorme e Pierre abandona a intimidade conjugal. Parte on the road com plataforma de engate no telemóvel. Jours de France, hoje no Queer Porto, abre-se ao mundo, à luz, à paisagem. Estradas esquecidas do mapa do cinema francês redescobertas pelo realizador Jérôme Reybaud.

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Jours de France, que esta quinta-feira o Queer Porto 3 exibe, às 19h, no Teatro Rivoli dr
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Pierre é interpretado por Pascal Cervo dr
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Pierre é interpretado por Pascal Cervo dr
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Paul é interpretado por Arthur Igual dr

O plano de um homem que dorme – para Jérôme Reybaud, a sua primeira longa tinha de começar assim. “A presença animal do corpo é ainda mais forte quando ele dorme, um homem é mais viril quando dorme porque o seu corpo não tem protecção”, diz. Ainda mal começara a escrever Jours de France, que esta quinta-feira o Queer Porto 3 exibe, às 19h, no Teatro Rivoli, o cineasta já tinha o início do filme – e não por acaso, como veremos, já tinha o fim.

É assim o início: Paul dorme e Pierre abandona o domicílio conjugal. Paul dorme, Pierre circula no escuro com a luz do telemóvel. Como se se despedisse? A luz acaricia Paul – não é uma mão, é um telemóvel. A luz desmaterializa Paul?

Pierre parte de Paris, on the road. Vai subir aos Alpes, descer até ao mar, à Côte d’Azur, circular sem destino, à mercê do desejo que não quer fixo, plataforma de engate no telemóvel. É a disponibilidade para encontros – e o medo da intimidade. Essa sequência que abre Jours de France – não tendo nada de programático, porque nada explica e não se explica, experimenta-se como o coração do filme – vai ser retomada em outras, com luz de telemóvel, vai ter variantes, com personagens que não se acariciam mesmo se não oferecem resistência ao sexo, com corpos transformados em ecrãs, abstracções eufóricas. Será por medo da intimidade que Pierre deixa Paul? “A carícia, o toque, é algo de mais íntimo do que o acto sexual. Uma felação, uma penetração, podem ser coisas com menos peso de intimidade do que uma carícia”. Sim, concede Jerôme, que sendo o realizador formula hipóteses como um espectador: “Pode ser uma das razões da partida de Pierre. A conjugalidade produz sem reflectir uma intimidade. Ao fim de alguns anos podemos sentir-nos abafados. Na distância pode-se estabelecer um tipo de comunicação mais forte. O facto de se viver ao lado do outro, em cima do outro, todo o tempo, pode suprimir o amor — é um cliché, mas é verdade.”

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Pierre afasta-se, começa a viagem – por estradas que Jerôme, que nasceu em Cannes e vive em Paris, conhece com as suas variações de luz, e que trouxe para o filme como um documentário ligado à ficção. É uma fenomenologia do engate que se percepciona. “Quando se engata, procura-se um partenaire, mas esse processo da procura é um processo de conhecimento do mundo. Vai-se a lugares e a estradas a que nunca fomos antes. E espera-se, espera-se, espera-se. E olha-se e escuta-se. Há um elo entre o procurar sexo com desconhecidos e receber o mundo. Como é um momento cortado das obrigações da conjugalidade, está-se duas horas sozinho, tudo desaparece, a não ser a procura do engate. Há a espera, barulhos, cheiros, árvores, escuta-se melhor, há uma pesquisa paralela à sociedade – como nos temos que esconder, observamos de fora uma vida da qual participamos, logo, vemos melhor.”

Jerôme formula uma hipótese – um filme sobre a experiência do mundo (das estradas, da luz, do relevo na paisagem, das temperaturas) deve permitir diferentes hipóteses de ser experimentado. “Atrás da partida de Pierre se calhar está o desejo de que Paul vá atrás dele.” Paul vai. Utilizando o seu telemóvel, e a aplicação de engate, para localizar Pierre (porque o telemóvel permite encontros e reencontros, Jerôme diz que o filme não emite julgamento sobre a tecnologia, deixa isso para a experiência do espectador).

Olhemos então para Pierre e Paul. Podemos estar do lado de um ou do outro – ou flutuar entre um e outro. O primeiro tem ar de seminarista, alheado do seu corpo – mas é ele que segue o apelo do movimento. É Pascal Cervo que interpreta. Paul (Arthur Igual) é de sensualidade exuberante, o corpo do actor poderia ser um veículo mais formatado à deriva da personagem de Pierre. Mas Paul quer estrutura, surge ligado a cenários que o fixam. Esta contradição entre os corpos e o programa das respectivas personagens é das coisas mais sedutoras do filme. Jerôme parece ver pela primeira vez a contradição, mas explica-a: “Não tinha pensado nisso, é interessante. Escrevi o argumento para quase todos os actores. Um ou dois papéis não estavam a ser escritos para um rosto especial, era o caso de Paul, o que é desagradável para mim, porque um rosto, uma voz, ajuda-me. Foi difícil, passei horas à procura, até que encontrei Arthur, que é actor de teatro. O que procurava nas personagens de Pierre e Paul era a diferença. Na distância entre esses corpos algo funciona. Pascal Cervo é o único actor em França que está ausente estando presente. Não esconde as paisagens. Se tivesse dado a Arthur a personagem de Paul, Arthur, pelo seu corpo, ter-nos-ia escondido a paisagem”.

Ei-la então, a França desaparecida do cinema francês. Jérôme Reybaud quis deixar Paris para trás, percorrer estradas desaparecidas do mapa cinematográfico, estradas de gente como Jean-François Stevenin ou Jean-Claude Biette. Se a História do cinema fosse dividida entre os “cineastas de uma geografia e os outros”, saberia onde ficar. Nada a ver com a diferença entre os que filmam em exteriores e interiores. “Mesmo em cineastas de estúdio, como Hitchcock, dois ou três planos dele em exteriores têm uma vitalidade dos lugares mais forte do que muitos que colocam a câmara nas ruas de Paris.” Ou Rohmer, etiquetado como cineasta da palavra, preocupado com o teatro das personagens, mas vibrante a inundar os planos com os sítios.

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“Desde as primeira projecções” – Veneza 2016 – “que as pessoas me diziam: ‘é bom ver um filme francês que não se passa em Paris’. Não tenho nada contra a cidade, que tem virtudes fotogénicas. Mas foi muito filmada, sobretudo a partir da nouvelle vague. Não quis meter-me num caminho já muito percorrido. E sentir a presença do mundo é mais difícil em Paris, há demasiados ecrãs, a excitação, a política, o divertimento. Numa rua de Paris é difícil três segundos que seja de desconexão — talvez seja possível com uma luz particular. Não sou um cinéfilo, mas vi muitos filmes e acho que uma das funções do cinema é mostrar os lugares, não como décores. Mesmo num filme mau, isso já vale”.

E acontece que no florescimento sensual que se abre a Pierre na estrada, as manobras de engate vão-se tornando cómicas ou burlescas, às vezes falhadas, mas sempre filtradas por ecrãs ou paredes. Cabe às paisagens imporem-se como experiência física. O espectador respira o ar rarefeito dos Alpes. Através de um cruzamento entre o documental e o ficcional, o real e o onírico, a viagem tem contornos e acompanhantes fantásticos que se sentam no lugar do morto. Encontram-se a fábula, os bosques, a música e a poesia. “O lado mais irrealista do filme acaba por ser a transcrição de diálogos que tive nas estradas de França. Paradoxalmente, o documental passa como onírico. Há coincidências, rêveries, tudo isso, mas a possibilidade de sonho é dada pelos locais. Nasci em Cannes, habito em Paris, quando vou ver a minha mãe vou de carro. São lugares que conheço há 25 anos, que experimentei durante as manhãs e as noites de viagem. O argumento reduz-se a três linhas, alguém poderá dizer que não se passa nada. Podia ter feito um filme experimental de cinco horas em que filmasse a estrada com um iPhone. O coração do filme é isso: a realidade documental e ‘poética’ das paisagens. Tentar fazer perceber ao espectador a presença do mundo, o que é mais fácil de tocar quando se espera um engate, quando se está perdido dentro de um carro, numa luz particular. As personagens vieram depois.”

Pierre e Paul. A cena final inverte o início. Pierre dorme. Paul acaricia-o – sem telemóvel. Não há spoiler aqui. Cada um pode sentir isto de maneira diferente – que casal é agora este? –, depende da viagem que se fizer pelas estradas do filme. Cada um pode ficar com o seu fim. “É o espectador que deve decidir. Pierre dorme. Ou está em total confiança, como uma criança, ou escapou-se. Podemos equacionar coisas diferentes sobre esse sono.” Se se espera de Jérôme Reybaud um GPS para esta narrativa, avise-se já que ele não utiliza telemóvel.

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