Selva Almada pergunta porque é que se morre só por se ser mulher

Selva Almada encontrou uma voz de tremenda crueza poética para contar a morte de três adolescentes. É um livro onde a escritora põe a sua biografia para dizer que podia ser ela. Que foi sorte não ser ela. Raparigas Mortas pergunta porque é que se morre só por se ser mulher.

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É um livro sobre o que se passa do lado de dentro das portas, como nos livros de autoras americanas que Selva Almada leu e de que gosta: Carson McCullers, Flannery O'Connor — mas também Erskine Caldwell Nuno Ferreira Santos

Há qualquer coisa de sacrificial, de morte de inocência, no nome que se dá no interior da Argentina ao acto de pegar numa rapariga e fazê-la passar por vários homens. Usar o corpo dela e depois abandoná-la. Diz-se que isso é “fazer o bezerro”. Quando ouviu pela primeira vez esse nome associado a uma prática que conhecia, Selva Almada arrepiou-se. Quem lhe contou foi o amigo de uma rapariga apunhalada na própria cama enquanto dormia, no dia 16 de Novembro de 1986. O mistério do assassínio nunca foi resolvido. Chamava-se Andrea Danne, era adolescente. Como as mortes de Maria Luísa Quevedo e Sarita Mundín, também adolescentes, também habitantes de pequenas povoações do interior argentino nos anos 80, as suas mortes aconteceram por elas serem mulheres. Passados mais de trinta anos, nenhuma delas foi resolvida.

Andrea, Maria Luísa e Sarita são o centro de Raparigas Mortas (D. Quixote), livro de Selva Almada, 44 anos, natural de Ente Ríos, província entre Buenos Aires e a fronteira com o Uruguai. A escritora usa as ferramentas da literatura para narrar três historias reais, unindo-as através do seu olhar. “A manhã de 16 de novembro de 1986 estava limpa, sem uma nuvem, em Villa Elisa, a terra onde nasci e me criei, no centro-leste da província de Ente Ríos.” é a primeira frase que se lê e o esclarecimento de que o "eu" que narra é o eu da autora.

“Não ha nada de ficção neste livro. O que acontece é que se está a contar um facto real, uma investigação, com os recursos da literatura. Isso dá ao livro um ar novelesco, contar com elementos que não vêm do jornalismo mas da literatura”, diz Selva Almada, longa cabeleira que já foi negra e agora está pontuada de brancos, iluminando-lhe o rosto quase adolescente, uma timidez que se esvai quando começa a falar do que sabe, como por exemplo a vida no interior argentino, ou deste livro, aquele que mais se orgulha de ter escrito. Orgulho pelo trabalho que deu, tempo que tomou, a investigação, as entrevistas, andar no terreno. “Sinto que o decurso de tudo isso e a escrita se repercutiram na minha vida pessoal”, justifica num cenário muito diferente da sua geografia literária. Está em Cascais a participar no Festival Intrernacional de Cultura, o mar ali, uma piscina azul, sol nas espreguiçadeiras em volta, o céu também azul, em contraste com o céu de pós-tempestade da manhã de domingo em que o pai preparava as brasas para o almoço e a rádio no quintal junto à amoreira deu a notícia. “Eu tinha treze anos, e naquela manhã a notícia da rapariga morta chegou até mim como uma revelação. A minha casa, a casa de qualquer adolescente, não era o lugar mais seguro do mundo. Dentro da nossa casa podiam matar-nos. O horror podia viver no mesmo tecto que nós”, lê-se ainda no início de Raparigas Mortas, na descrição de um momento revelador, de tomada de consciência de que ser mulher é ser vulnerável. Foi o primeiro. Nos anos seguintes vieram noticias de outras mortes; reteve mais duas, em Chaco e junto ao rio Tcalamochita, Cordoba. Todas contemporâneas de Selva.

Faltava a consciência de outra palavra. Estamos ainda no livro: “Três adolescentes de província assassinadas nos anos oitenta, três mortes impunes ocorridas quando ainda, no nosso país, desconhecíamos o termo femicídio. [...] Não sabia que uma mulher podia ser morta pelo simples facto de ser mulher.” O trecho foi escrito há dois anos. Selva Almada pega numa melena de cabelo, ajeita o corpo na cadeira baixa e atira-o depois para frente, mãos cruzadas sobre os joelhos, para falar do que a palavra lhe suscita. Femicídio. “Como da primeira vez em que a ouvi chamou-me a atenção e depois me pareceu-me tão obvia; se havia uma palavra como homicídio teria de haver outra, femicídio. Tenho essa palavra completamente interiorizada. Mas custa dizer e escrever femicídio, custa que esses crimes só possam acontecer a uma mulher e não a um homem. Essa palavra refere-se a uma coisa muito mais pontual do que homicídio. Alerta-me para uma descoberta tardia que fiz, é muito chocante dar-me conta de que somente pelo facto de se ser mulher se pode sofrer ataques. De homens ou de outras mulheres. Há mulheres criadas no machismo, porque isso fazia parte de uma cultura.”

O modo de dizer

Foi uma palavra decisiva e de cero modo definidora do tom que escolheu para escrever o livro. Isso e pôr-se nele, assumindo-se como a voz que narra. E não foi fácil achar o modo de contar. “Custou-me bastante. Ao longo do tempo fiz rascunhos diferentes, muitas versões, justamente à procura de uma forma de contar o que tinha para contar. Nenhuma me convencia. Eu pensava que tinha de adoptar uma voz mais de cronista, mas na hora de contar, tudo o que saía com essa voz me soava muito forçado, falso, como se estivesse a fingir ser uma coisa que não era. Até que voltei a reler A Sangue Frio [livro de Truman Capote], também à procura de como podia construir essa voz e optei por fazê-lo como qualquer coisa que tinha a ver comigo mais do que com os casos.”

Assim: “Era domingo e o meu pai fazia o churrasco nas traseiras da casa. Ainda não tínhamos churrasqueira, mas ele desenvencilhava-se bem com uma chapa no chão, as brasas por cima e, por cima das brasas, o grelhador. Nem mesmo com chuva o meu pai suspendia o churrasco: outra chapa a cobrir a carne e as brasas era suficiente.” É este o tom e a cadência, um modo de contar que marcou o pulsar do livro que intercala poesia e crueza, única forma de ser fiel à violência de que trata, de que aquelas mulheres foram vítimas. Selva continua a conversa: “Comecei a contar desde a minha própria perspectiva, do meu ponto de vista, da minha casa, de situações muito familiares e isso marcou um caminho e acaba por ter muito da minha biografia.” E o que se segue é o incomodo e a urgência da escritora. Enquanto vai narrando, conta episódios que se passaram com ela e com pessoas próximas. O que é andar à boleia e ter medo do toque, das bocas, pressentir o perigo. Os olhos de Selva são vivos: “Nesse primeiro momento senti pudor e a necessidade de cortar tudo isso, tirar essas coisas que tinha já escrito. A editora ajudou-me muito. Eu tinha muitas dúvidas, parecia-me que eu não devia aparecer tanto, estava um pouco incomodada, não sabia bem como resolver. Mas a editora gostava. Parecia-lhe que o texto se humanizava muito mais quando havia coisas minhas e acabou por me convencer de que estava bem assim, que era bom continuar naquele tom. Agora acho que sim; acho que isso dá uma abertura ao livro no sentido em que não estou a contar que me aconteceu alguma coisa a mim tão extrema como a que aconteceu àquelas raparigas.”

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NUNO FERREIRA SANTOS

O que Selva quer dizer é que o que lhe aconteceu a ela acontece ou pode acontecer com todas as raparigas, todas as mulheres. Serem olhadas como um corpo. “O que me aconteceu e às minhas amigas são coisas mais do quotidiano, do dia a dia, de como o vivem as mulheres. Contar isso também é importante. O que ocupa mais a atenção é o mais grave, a violência psicológica ou física, a morte, mas conto todas as coisas que ajudam a armar a trama que sustém essa cultura. Há um medo e um incómodo de que só sabem as mulheres.” Fala em violência de género, em machismo, em misoginia. Mas diz isso sem recurso a clichés, deixando claro que ser feminista é uma opção ou uma necessidade, mas sem obrigatoriedade de obedecer a padrões. Andar à boleia como se andava no interior da Argentina nos anos 80 era repudiar a ideia de um toque, sabendo que ele podia acontecer e permanecer o mais sereno possível, era pressentir o perigo, o desprezo no olhar.  “Não queria recorrer a golpes baixos, mau gosto, para escrever esse livro que não é uma ficção, mas parecia-me que havia momentos em que precisava de dureza, que o que haviam feito com esses corpos era de uma crueza e violência tremendas e isso só se podia contar com linguagem crua. Também me parece necessário que quando falamos de femicídio, saibamos como são ultrajados esses corpos. Não é só dizer 'apareceu morta', como dizem as notícias. Antes da morte dessa mulher, o seu corpo foi violado, maltratado, cortado. Não creio que isso deva ser dito nas notícias ao detalhe, mas num livro, que se lê de outra maneira, menos imediata, onde há outro tempo de leitura e outro pacto de leitura, parece-me que sim, que corresponde ao que se passara com esses corpos.”

A escritora persegue cada um dos casos. “Talvez seja essa a tua missão: juntar os ossos das raparigas, montá-las, dar-lhes voz e depois deixá-las correr livremente até onde tiverem de ir”, escreve. E anda pela geografia onde cada um ocorreu, fala com familiares, médicos, tenta reconstituir sem pretender resolver o mistério.

O mistério é o menos. O que se passou, de facto, é o mais neste livro também feito de silêncio. Não o mesmo silêncio que acompanha, por exemplo, a prostituição consentida por familiares de muitas raparigas que ajudam a compor o orçamento de casa. Um carro buzina na rua e a rapariga sai com a família a ver. Ninguém pergunta, ninguém comenta. “Sim”, comenta Selva Almada, “não era vista como prostituição, mas como ajuda monetária. Era silenciada. Esses silêncios passam muito nas sociedades mais pequenas, como as aldeias. Por isso também me parece sempre tão interessante escrever sobre esses lugares. É como se o que não se fala, o que não se põe em palavras, não existisse. Como as histórias de violações, de abusos entre familiares. É sempre melhor que tudo permaneça como está, ainda que esteja mal. Há uma segurança em manter as estruturas.”

Ela conhece esses meios. Cresceu e vive neles até há 17 anos, quando se mudou para Buenos Aires. A distância fê-la ver todo o potencial literário que há na província. Escreveu sobre isso em poemas, contos, nas suas ficções e agora neste premiado e elogiado Raparigas Mortas. Sabe, por exemplo, como se ensina a submissão e como a mãe a fez perceber que tem de valorizar o contrário. Para isso contou-lhe uma história de violência: “Quando eu era pequena, a minha mãe contou-me em varias ocasiões o mesmo episódio. Uma história de quando tinha acabado de conhecer o meu pai. Eles casaram muito novos, com dezasseis e dezoito anos (...) Não tinham tido um namoro longo por isso não se conheciam muito bem. Pouco tempo depois de viverem juntos, quando estavam a almoçar, tiveram uma discussão, alguma parvoíce de adolescentes que foi ficando acalorada. Então o meu pai levantou a mão ameaçando dar-lhe uma bofetada. E a minha mãe, nem é tarde nem é cedo, espetou-lhe um garfo no braço que ele tinha apoiado na mesa. O meu pai nunca mais se armou em esperto.” Diz que este foi um momento de génese, fundador, do que viria a ser a relação dos pais e da sua própria vida.

E este é também um livro sobre a educação das mulheres. As da geração de 80. Um livro sobre o que se passa do lado de dentro das portas, como nos livros de autoras americanas que Selva Almada leu e de que gosta. Carson McCullers, Flannery O'Connor, mas também Erskine Caldwell. Os pontos em comum entre o Sul dos Estados Unidos e o interior da Argentina: o negro que há no lado doméstico e não se importar mesmo nada que lhe chamem uma escritora rural.

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