Elis "é o resultado de uma longa estrada"

Elis estava num altar para Andréia Horta. Trazer a veneração para dentro do seu corpo, para a interpretar no biopic Elis, foi a dificuldade. "Mas o momento de maior liberdade foi quando entendi que todos sabem que não sou Elis". A partir daí foi muito mais Elis Regina, feliz Regina.

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O filme Elis correspondeu à concretização de um antigo sonho, quase uma obsessão

O filme Elis, de Hugo Prata, dividiu a crítica brasileira, mas em geral destacaram, uns com relativo entusiasmo mas todos com reconhecimento, o trabalho da actriz escolhida para interpretar aquela que foi considerada a maior cantora do Brasil, Elis Regina. O crítico Mauro Ferreira foi um dos mais efusivos, falando numa “actuação antológica”: “Horta é Elis nos trejeitos, nas entonações, no tom da voz, nas mínimas expressões.”

Nascida em 27 de Julho de 1983 em Juiz de Fora, Minas Gerais, Andréia Horta fez teatro em criança, na sua terra natal, mudando-se para São Paulo aos 17 anos. Só em 2005 conseguiu começar a viver do teatro, estreando-se na televisão em 2006, em JK, como Márcia Kubitschek (filha do então presidente do Brasil Juscelino Kubitschek). O filme Elis correspondeu à concretização de um antigo sonho, quase uma obsessão.

Qual foi a sua relação, na infância e na juventude, com a obra de Elis Regina?
Imensa. Sou fã dela desde os 14 anos. Comecei a escutá-la bastante, na adolescência cortei o cabelo curtinho igual ao dela, e na Faculdade comecei a pensar que um dia iria fazer Elis. E isso fez com que eu tivesse uma relação ainda mais estreita com a obra. Li biografias, vi documentários sobre ela. Este papel é o resultado de uma longa estrada.

Foi submetida a testes de casting ou foi escolhida logo à primeira?
Antes de eles terem a primeira versão do roteiro, fui logo falar com eles. Soube que iam fazer o filme sobre ela por uma amiga que trabalhava no roteiro. Ela disse: "o director precisa te conhecer". E fui. Conversámos, depois, ao longo de três anos. Eu dizia: "vou ser". Quando saiu o dinheiro para o filme eu já estava com outro trabalho, o que me impossibilitava de filmar nas datas previstas. E ele [Hugo] começou a contactar outras meninas. Mas como a força era grande, o outro trabalho caiu. E voltei para o filme.

E foi nessa altura que teve de fazer testes?
Ele falou: "Quero que você faça um teste. Porque agora eu já tenho várias outras actrizes que fizeram e eu gostaria de comparar." Tudo bem, disse eu. Fiz e deu tudo certo.

O que a conduziu primeiro a Elis foi a personalidade dela ou a obra?
A obra, primeiro. Mas por ouvi-la muito, quando comecei a ler biografias, a saber coisas sobre ela, o temperamento dela, fiquei fascinada. Tão fascinada quanto pela obra. Pela artista que ela era e pelo posicionamento que ela tinha naquele momento. Porque todo o período artístico da Elis se deu dentro da ditadura militar no Brasil. Quando ela morreu ainda havia ditadura militar. E o posicionamento dela era muito intenso. Então eu ficava fascinada com ela, com tudo o que ela dizia, como ela falava, todas as entrevistas.

A maneira como encarna, no filme, de Elis, é mais do que mimética. Há uma absorção de gestos, modos, até o sorriso, que pareceria inimitável. O que precisou para chegar tão perto da personagem? Viu muitos filmes?
Muitos. Eu tinha um material de 42 horas [de gravações videográficas] só de Elis. Das primeiras entrevistas, quando ela era novinha, com 21 ou 22 anos, até à última antes de ela morrer. Era um material muito vasto, de entrevistas e shows. Estudei muito isso.

Foi, portanto, um trabalho intenso. Teve ajudas?
Sim, foi intenso. Mas eu tinha um trabalho específico. Tinha uma preparadora de corpo, uma fono-audióloga, a Maria Sílvia Sequeira Campos, que faz muitas coisas comigo, e fizemos um trabalho bem minucioso em cima da fala da Elis, e um trabalho de campo, seguindo o que ela cantava. Foram três meses numa sala de ensaio, de segunda a sexta, oito horas por dia. Foi bem intenso, mas fui eu mesma que pedi que fosse assim.

Foi fácil ou difícil aproximar-se da expressão dela?
Foi muito difícil. Porque sendo eu uma grande admiradora dela, isso fazia com que Elis estivesse a quilómetros de distância, quase num altar, um ídolo. Trazer isso para dentro do meu corpo foi difícil. Mas o momento de maior liberdade, o que abriu as portas, foi quando entendi que todos sabem que não sou Elis e que era aí que morava a minha liberdade de interpretá-la. Daí em diante fui muito mais Elis Regina, feliz Regina.

Dos vários trabalhos que teve como actriz, qual foi o mais desafiador?
Foi Elis, sem dúvida. Porque ela está muito viva na memória das pessoas. Se colocar no Google o nome dela, tem milhares de entrevistas e shows. Logo a aprovação, em termos de comparação, era muito mais difícil. Mas a outra parte muito interessante do trabalho foi quando decidi me desresponsabilizar da ideia de agradar, porque estava ali fazendo o que queria fazer há tantos anos e estava totalmente ocupada em realizar esse desejo, muito grande, que era experimentar a Elis em mim.

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Quando viu o filme pronto, como reagiu ao encarar a sua imagem?
Há logo aquela abertura ‘Não quero lhe falar/ Meu grande amor…’ [Aos nossos pais, de Belchior, canção ouvida em off na voz de Elis; as restantes são também gravações dela] e quando de repente aparece o meu rosto, sonho e realidade estavam tão absolutamente dançando juntos que, para mim, até na própria letra da música, “viver é melhor que sonhar”, foi uma realização muito grande. Não tinha visto nada ainda, fazia e seguia para a próxima cena, só vi quando estava pronto. Claro que fiquei primeiro perseguindo o que é que tinha resultado de todo aquele estudo, porque quando vi o filme já se tinham passado meses desde o final das filmagens. Então estava analisando o trabalho. Só que depois, em determinado momento, a análise foi pró céu e eu fui voar. Comecei a assistir ao filme mesmo e fiquei feliz. Porque achei que tinha feito tudo o que eu pude fazer dentro daquele trabalho todo. Era o mais honesto de mim até àquele ponto, como artista.

O que acha que é mais forte para o Brasil, hoje, na herança de Elis Regina?
Acho que ainda a têm como a maior cantora do Brasil. Teve uma carreira de vinte anos e foi muito curta, porque morreu com 36 [Andréia Horta tem hoje 34 e tinha 31 quando começou a rodagem]. Quando eu estava fazendo o filme, todas as pessoas que vinham falar comigo, contemporâneas de Elis, lembram ainda o que estavam fazendo quando se soube da morte dela, em 1982. Foi uma comoção nacional, nunca mais houve algo assim na morte de nenhuma outra cantora brasileira. As pessoas choravam, saíram para a rua, fizeram um velório imenso. Foi uma grande voz, mesmo. E uma intérprete de peito aberto, que falava às multidões. Na bossa nova estava tudo cantando baixinho, com o banquinho e o violão, e Elis vem, de uma maneira épica, cantando a vida do povo brasileiro. Ela pega a música sertaneja, escolhe diferentes tipos de autores. Tanto que nunca mais ninguém regravou muitas das coisas que ela gravou.

E para si, o que significa agora Elis Regina?
Depois de ter passado por ela, tenho muito mais coragem de ser quem eu sou. E tenho muito mais consciência da efemeridade da vida. Foi um grande legado, eu acho.

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