Esta caravana leva activistas, moradores e ideias por uma política de habitação para todos

A caravana pelo direito à habitação é uma "forma de participação cívica.” Vai percorrer bairros, centros históricos e zonas periféricas de cinco cidades portuguesas para colocar a discussão sobre o direito à habitação na ordem do dia. Em vésperas de eleições autárquicas, “não é por acaso”.

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No final de Março de 2017, uma assembleia de quatro bairros da área metropolitana de Lisboa escreveu uma carta aberta “em defesa da dignidade humana e do direito à habitação”. Era a voz dos moradores desalojados, ou em risco de o serem, do Bairro 6 de Maio, na Amadora, dos que vivem sem luz e sem água na Torre, em Loures, dos que sobem as escadas às apalpadelas nos prédios inacabados do Jamaica, no Seixal, dos que foram realojados sem escolha na Quinta da Fonte, em Loures.

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No final de Março de 2017, uma assembleia de quatro bairros da área metropolitana de Lisboa escreveu uma carta aberta “em defesa da dignidade humana e do direito à habitação”. Era a voz dos moradores desalojados, ou em risco de o serem, do Bairro 6 de Maio, na Amadora, dos que vivem sem luz e sem água na Torre, em Loures, dos que sobem as escadas às apalpadelas nos prédios inacabados do Jamaica, no Seixal, dos que foram realojados sem escolha na Quinta da Fonte, em Loures.

Acendia-se o rastilho de “uma coisa maior”. O resultado foi a criação de uma caravana – que é na verdade um autocarro -, movida por associações, moradores e académicos, que vai percorrer o país a recolher propostas e discutir as políticas de habitação em Portugal. “E, principalmente, a falta delas”, acrescenta Rita Silva, activista da associação Habita e uma das organizadoras da Caravana pelo Direito à Habitação que arranca esta sexta-feira em Lisboa. A viagem só termina dia 30, nos Açores.

Partem com alguns problemas assinalados (outros tantos para identificar até ao fim da viagem), à procura de soluções. Hoje o cenário é este, traça Simone Tulumello, da organização: é cada vez mais difícil arrendar ou manter uma casa no centro das grandes cidades. Escasseia a oferta de casas para habitação permanente à custa da proliferação de alojamentos turísticos. Disparam as rendas. Fora dos centros, “ainda que governantes o neguem, há barracas. A habitação condigna é um mito” para centenas de famílias. A culpa? Colocam-na na falta de “uma política pública que tire a habitação, e as pessoas, das mãos do mercado.”

“Isto já não é um problema só de bairros”, repara Rita Silva. “Estamos a caminhar para uma situação explosiva de rendas e despejos que vai afectar muitas pessoas” até agora à margem do problema, antecipa. Por isso, o colectivo vai para a estrada recolher propostas e exigir medidas. Ao Governo, às autarquias e à sociedade civil.

“Não temos uma política pública de habitação e os problemas disso são transversais a várias classes sociais e a várias zonas das cidades”, diz Simone Tulumello, que é arquitecto e investigador de pós-doutoramento. “A habitação é agora uma mercadoria, em vez de um direito”, acrescenta Rita.

“Não há resultados da participação formal”

A par da precariedade dos bairros sociais, a especulação imobiliária é o elo comum a quase todos os locais por onde vai passar a caravana. Dos centros históricos de Lisboa, Coimbra e Porto às zonas costeiras dos Açores. “Locais como a Calheta, na ilha de São Jorge, e São Roque, em São Miguel, eram desvalorizados, vulneráveis aos riscos e, por isso, maioritariamente pobres. Com o turismo, isto inverte-se e estas zonas conhecem fenómenos brutais de gentrificação e tornam-se inacessíveis à sua população”, descreve Lídia Fernandes, activista da Habita e uma das organizadoras da passagem pelo arquipélago.

Em Beja, a caravana pára junto das comunidades ciganas. Procuram-se respostas: como interromper o ciclo de pobreza? Como fomentar a solidariedade local? Como mediar as ameaças de expulsão destas comunidades?

A viagem termina na véspera das eleições autárquicas. “Não é por acaso. Esta é a conjuntura onde podemos garantir direitos e a necessidade de os assegurar é óbvia”, diz Simone Tulumello. Aliás, reconhecida pela relatora das Nações Unidas que visitou o país no final do ano passado.

Em cada paragem, há uma programação diferente, feita por associações locais, movimentos, moradores e académicos. Participam activistas da Habita, da SOS Racismo, da CHÃO - Oficina de Etnografia Urbana, da Habitar Porto e da Retrato das Ilhas, investigadores da Gestual da Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa e do Centro de Estudos de Arquitetura e Urbanismo da Universidade do Porto, entre outros. Preparam debates, apresentação de filmes, visitas guiadas.

A caravana é “a forma de participação cívica” que activistas e moradores encontraram para se fazer ouvir. “Planos de pormenor, consultas públicas, audições. Fazemos tudo isso e não há resultados dessa participação formal”, diz Rita Silva. “As câmaras e os governos insistem em avançar com coisas em relação às quais os bairros estão completamente contra”, acrescenta a activista da Habita.

Na organização e no debate a ideia é juntar “o morador em via de despejo, ao académico interessado, à pessoa que nunca pensou no assunto”. Tentam formar redes de solidariedade. A cada paragem discutem as necessidades locais. “Não só as coisas más. Também importa que as pessoas falem do que mais gostam do local onde vivem, das suas memórias, e que pessoas de fora as oiçam”, explica Rita Silva. Afinal, “isto não é só um projecto participativo, mas empoderador”.

As eleições e o Orçamento do Estado

A iniciativa quer colocar a pressão sobre a lei de bases da habitação, cujo projecto de lei está a ser preparado pelo grupo de trabalho parlamentar liderado por Helena Roseta. “Temos uma lei de bases da Segurança Social e, às vezes, nem isso dá garantias. Só a apoiamos quando soubermos o que ela significa”, diz Rita Silva.

Depois de uma lei de bases, uma política de habitação. “E nessa política tem que existir um orçamento. Não há fundos nacionais nem europeus para a habitação, porque sempre acharam que era uma obrigação do mercado. Mas esse tempo acabou”, acredita Simone Tulumello. “Não estamos a tentar imaginar uma cidade parada”, acrescenta, “mas por vezes as mudanças fazem com que as pessoas fiquem sem casa. E o Estado precisa de acautelar isso.” Há, por isso, a “urgência” de exigir mudanças antes que esteja fechado o próximo Orçamento do Estado.

Pedem maiores verbas para a habitação social - quer para reabilitação, quer para construção. Há cerca de 120 mil fogos (2% da habitação no país), a maioria municipal, com mais de dez anos e insuficientes face à procura. Para aceder às pouco mais de 13 mil que pertencem ao Estado, há 2120 pessoas à espera, segundo dados actualizados do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU).

O que o Governo já prometeu vai noutro sentido. Disse o ministro da tutela, João Matos Fernandes, que a intenção é “ter um parque habitacional com apoio público” que chegue às 170 mil habitações em oito anos. O que significa um aumento da “oferta de arrendamento acessível”, não das habitações públicas. Para isso será usado o fundo de reabilitação em edifícios públicos e o regime do arrendamento acessível para privados, com “seguros de rendas” e financiamento mais fácil.

Planos mais concretos sobre aquilo a que Matos Fernandes chamou a “nova geração de políticas de habitação" – e que é a “prioridade” de António Costa até ao fim do mandato - só depois das autárquicas.