Relatora da ONU sobre habitação em Portugal: “Algumas das condições que vi são deploráveis”

Leilani Farha esteve em Portugal a avaliar o impacto da crise na habitação. Foi a Lisboa, Porto e arredores das duas cidades. "Estou surpreendida? Talvez não. Estou destroçada? Absolutamente. Acho que tem solução? Facilmente", diz.

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Canadiana, a relatora da ONU fala de necessidade de intervenção imediata em situações como sem-abrigo e moradores de bairros de construção informal Enric Vives-Rubio

Natural do Canadá, advogada, Leilani Farha é Relatora Especial da Organização das Nações Unidas (ONU) e esteve em Portugal com a missão de avaliar o impacto das medidas de austeridade nas populações vulneráveis. Foi às “ilhas” do Porto, ao bairro 6 de Maio (Amadora) ou ao bairro da Torre (Loures) “onde não há luz há dois meses” e onde “a comunidade cigana também não tem água”, conta. “Vivem no escuro. E estava tão escuro. Vivem com lixo ao lado. São condições muito, muito duras”, confessa a também directora-executiva da ONG Canada without Poverty.

Na manhã desta terça-feira Leilani Farha deu uma conferência de imprensa em Lisboa, mas ontem à noite antecipou ao PÚBLICO algumas das conclusões da sua visita. Os sem-abrigo, as pessoas que vivem nos bairros de construção informal e nas “ilhas do Porto” “precisam de intervenção imediata do Governo”, diz.  

Porque é que escolheu Portugal para esta visita?
Como advogada de direitos humanos estou interessada nas medidas de austeridade. Há um princípio na lei de direitos humanos que é: “O Estado não deve adoptar medidas regressivas.” O que é uma medida regressiva? Um exemplo: se o Estado tem 12.000 casas de habitação social não pode diminuir esse número porque as casas são muito importantes para as populações vulneráveis.

Por natureza, as medidas de austeridade são regressivas, e do ponto de vista dos direitos humanos é muito importante ir aos países e estimular os governos a lutarem. Comecei a ler sobre Portugal, sobre os os vistos Gold e a turistificação, e achei interessante vir. Tentamos ser representativos: fui a Cabo Verde (África), Índia (Asia), Sérvia (Europa de Leste) e irei ao Chile (América Latina).

Ficou surpreendida com o que viu em Portugal?
Estou surpreendida? Talvez não. Estou destroçada? Absolutamente. Acho que tem solução? Facilmente. Essa é a minha reacção. Houve pessoas que me disseram que sentem que o Governo as trata como animais, que têm medo de perder os seus filhos para as autoridades por causa das condições inadequadas de habitação em que vivem. Toda a história individual me afecta porque quero viver num mundo em que todos vivem com dignidade.

Qual o impacto da austeridade nestas populações?
Uma coisa que não podemos fazer é culpar a austeridade de tudo. Portugal tem uma história. Tive que me informar sobre as antigas leis de arrendamento que causaram alguns problemas no sector, e que depois colocaram alguma pressão no mercado imobiliário — se não há suficiente mercado de arrendamento isso pode causar problemas.

Uma das minhas recomendações é que o Governo central e local actuem imediatamente em algumas áreas. À luz da lei internacional dos direitos humanos algumas situações são tão horríveis que têm que ser atacadas imediatamente.  

Onde exactamente?
As situações que identifiquei como sendo de intervenção imediata são as dos sem-abrigo ou de quem está a viver em situações precárias, em bairros de construção informal. Esses casos têm que ser resolvidos imediatamente. Não podem existir pessoas com medo de não saberem onde vão viver amanhã. Isso não cria segurança numa sociedade. O direito à habitação é um princípio da lei internacional de direitos humanos. As pessoas que estejam em risco, a viver na rua ou em bairros de construção informal, precisam de ser alojadas adequadamente. Serem mandadas para casas de abrigo temporário não é a resposta.

Visitei as “ilhas do Porto”, casas miniatura, com 16 metros quadrados, onde vivem famílias de três ou quatro pessoas. Algumas das condições que vi são deploráveis. Conheci um casal idoso e o seu filho: o homem estava invisual e acamado havia 10 anos; a mulher era muito pequena e com alguma deficiência. Ela não tem capacidade para limpar a casa, têm um filho de 40 anos com alguma debilidade social, a viver em exclusão total. Estes problemas precisam de ser imediatamente resolvidos.   

Em Lisboa, que locais identificou onde o Estado precisa de intervir imediatamente?
Obviamente a população sem-abrigo em Lisboa. Fui à Mouraria, há alguma necessidade de intervenção, mas não tão urgente como estes casos.

Identificou violações de direitos humanos pelas autoridades locais ou pelo Estado?
Demolir casas sem que as pessoas tenham sítio para ir é uma violação do direito à habitação condigna. Não se pode demolir uma casa sabendo que essa pessoa vai ficar sem abrigo: isso é uma violação clara do direito à habitação condigna. Conheci pessoas que disseram que a casa deles tinha sido demolida, que não tinham para onde ir e que não existiam casas de habitação social para eles. Eles não conseguem alugar casas no mercado privado, e o Estado não pode basear-se no mercado privado quando as pessoas não o podem pagar.

O argumento de autarquias, como a câmara da Amadora, é que avisa as pessoas meses antes dos despejos, e que tenta encontrar solução: ou num abrigo ou apoiando dois meses de renda. É uma violação dos direitos humanos?
Gostava de ter-me encontrado com a Câmara da Amadora. É bom que avisem as pessoas um ano antes. Mas um ano não muda os rendimentos de uma pessoa. Não em Portugal. E um ano não cria opções de habitação para as pessoas que não têm dinheiro. Ser encaminhado para um abrigo durante uns dias não está de acordo com a lei internacional de direitos humanos. Há regras muitos claras sobre o que tem de acontecer: a comunidade tem que ser notificada sobre os despejos, tem que ser consultada e dialogar com quem faz os despejos para explorar todas as alternativas.

Hoje a tendência é deixar as pessoas viverem onde estão, reabilitando. Imaginamos que há uma boa razão para a comunidade não ficar ali. Quando a casa é demolida tem que haver a garantia de que as pessoas têm para onde ir a longo prazo. E a casa tem que ser adequada: e com adequada eu quero dizer que protege dos elementos exteriores, é acessível em termos financeiros, está perto de empregos, escolas, etc. Há obrigações que a Câmara da Amadora não seguiu.

Em bairros como o 6 de Maio há muita gente fora do Programa Especial de Realojamento (apenas os que foram registados em 1993 têm direito a casa). Há pessoas que alugaram casas a quem já tinha sido alojado. A autarquia diz que não tem possibilidade de dar casa a toda a gente. Que recomendações faria?
Eu percebo, às vezes, os municípios quando dizem que não têm dinheiro. Há muitas entidades que se socorrem de uma data específica para servir de fronteira a um programa, como é o caso do Programa Especial de Realojamento (PER). Será que 1993 é a fronteira ideal? Não é suficiente ter essa fronteira quando não há alternativas para a população.

Este PER pode ser o programa para realojar as pessoas de 1993. Então qual é o programa para os outros? Se a autarquia não tem dinheiro para os outros então tem que discutir outras possibilidades com o Governo. Isso é uma das coisas que, parece, não estão a correr bem: a relação entre Governo e autarquias. Parecem empurrar as responsabilidade uns para os outros.

Portugal está a violar leis de direitos humanos em matéria de habitação?
Não colocaria as coisas dessa forma. O que diria é que testemunhei o que acho serem violações ao direito a uma habitação condigna. Não apontaria o dedo a esta entidade ou aquela. Mas há um número de factores que estão a colidir com o direito à habitação condigna, em particular com pessoas da comunidade cigana e afrodescendentes.

Isso quer dizer que há discriminação racial e étnica?
O que posso dizer é que quando há uma população específica que vive em determinadas situações (nos bairros de construção informal são as pessoas de etnia cigana e os afrodescendentes) podemos pensar que eles estão a ser tratados da forma como estão tratados por causa da sua origem étnica ou racial. Posso concluir que há racismo? Não. Pode ser racismo construído: estão construídos determinados sistemas na sociedade em que algumas pessoas ganham e outras perdem, e quem perde são as pessoas de etnia cigana e os afrodescendentes. É uma discriminação e desigualdade construída. Mas dito isto, conheci muita gente que nasceu em Portugal a viver em situações muito precárias. São esquecidas. Há discriminação das pessoas que vivem na pobreza? Não tenho a certeza. Espero que, quando 20% da população é pobre, o Governo não os olhe dessa forma.

Quais são as suas recomendações?
Há opções: construir habitação social. Talvez leve demasiado tempo, e seja caro. As listas de espera para casas de habitação social são longuíssimas, em alguns casos quatro anos. Mas há opções, como conjugar com o mercado privado. Pode-se subsidiar um suplemento para a renda, que é usado pela pessoa onde ela quiser (há quem pague directamente aos arrendatários, mas eu não subscrevo essa opção porque paternaliza e estigmatiza as pessoas). E é preciso fazer um levantamento: quantas pessoas precisam de habitação social? Estes despejos têm que parar até se encontrar uma solução. E é preciso providenciar as casas onde as pessoas estão, nesses bairros, com o básico.

Sobre a turistificação, acho que é necessário implementar regulamentação para controlar a especulação e o número de alugueres temporários, em Lisboa e no Porto. Não é bom para as comunidades, acabam apenas com turistas nos centros das cidades. Há vários modelos: pode-se forçar uma percentagem de rendas acessíveis; dar incentivos fiscais a quem tem alugueres de longo-prazo, por exemplo. Em Vancouver estão a introduzir o aumento de impostos para as casas devolutas.

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