A minha curta passagem pelo PÚBLICO

A capa que escolhi mostra que, há vinte anos e antes da grande crise da dívida soberana, o endividamento já tinha entrado na mentalidade do país, para nosso mal...

Quando, há vinte anos, o eng. Belmiro de Azevedo me convidou para dirigir o PÚBLICO, um dos motivos para aceitar o convite foi saber aquilo que era e é do conhecimento geral: desde o início do jornal a Sonae e Belmiro de Azevedo sempre se abstiveram escrupulosamente de qualquer interferência, directa ou indirecta, na área editorial do PÚBLICO.

Foi uma posição inteligente da parte de Belmiro de Azevedo, mantida pelos seus sucessores. Só um diário editorialmente independente, sobretudo do seu proprietário, poderia conquistar, como o PÚBLICO conquistou, o prestígio de um credível jornal de referência. Durante a minha curta passagem pela direcção do jornal fui testemunha da sua total independência editorial. Não existem muitos proprietários de meios de comunicação social, portuguesa e estrangeira, capazes desta atitude.

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A primeira direcção do PÚBLICO, encabeçada por Vicente Jorge Silva, também contribuiu para a independência editorial do jornal, que se mantém até hoje. O grupo de jornalistas fundador deste diário colocou a independência editorial como uma condição absoluta para o lançar.

Daí o meu espanto ao ler num texto de José Sócrates, publicado em 17 de Agosto, em resposta a um longo artigo de Cristina Ferreira sobre a PT, o seguinte: o referido artigo “retoma de forma escandalosa e parcial a visão da empresa Sonae, que é proprietária do jornal (…) toda a notícia, o editorial e a primeira página não passam de um serviço aos interesses económicos do proprietário, envergonhando o jornalismo decente e honesto”.

J. Sócrates não se terá dado conta da falta de credibilidade desta afirmação. Aliás, são amplamente conhecidas as relações do primeiro-ministro Sócrates com a comunicação social; sucederam-se as tentativas para silenciar quem o criticava nos media – devia ser para assegurar o tal jornalismo decente e honesto…

A independência foi um dos méritos do aparecimento do PÚBLICO em 1990. Mas não foi o único. Ele trouxe um salto qualitativo à Imprensa portuguesa.

Uma das características do novo jornal foi dar mais atenção do que era então costume ao noticiário internacional e à integração europeia. Felizmente ainda estão no PÚBLICO jornalistas como Teresa de Sousa e Jorge Almeida Fernandes, que continuam a esclarecer-nos nessas áreas. Também as áreas da cultura e da ciência mereceram no PÚBLICO um tratamento bem maior do que era então corrente na Imprensa. Sem esquecer a economia e as finanças, que tanto iriam mexer com a nossa vida. A capa que escolhi mostra que, há vinte anos e antes da grande crise da dívida soberana, o endividamento já tinha entrado na mentalidade do país, para nosso mal...

Então, se o PÚBLICO era tão atractivo, porque fui seu director menos de três meses? Nessa altura, o PÚBLICO, em Lisboa e de certo modo também no Porto, preparava-se para mudar de instalações. O que implicava um trabalho administrativo suplementar, com muitos interesses contraditórios que importava conciliar. Acresce que estive semanas sem administrador nomeado e em funções. No grupo Sonae ser administrador de um jornal que não dava lucro não era cargo muito apetecido...

As tarefas administrativas tiravam-me tempo para me ocupar daquilo que realmente gostava e gosto de fazer, jornalismo. Apesar da preciosa ajuda do Nuno Pacheco, de quem fiquei amigo para a vida. Por isso resolvi demitir-me.

Mas continuei a gostar deste jornal, de que fui colunista em vários períodos e de que sou assinante. E estou feliz por, vinte anos depois da minha fugaz passagem pela sua direcção, o PÚBLICO continuar a sair todos os dias. É mais uma dívida que o país tem para com o eng.º Belmiro de Azevedo e todos os que aqui trabalham. Desejo as maiores felicidades à nova equipa directiva!

Francisco Sarsfield Cabral foi director do PÚBLICO de 16 de Dezembro de 1997 a 5 de Março de 1998

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