O regresso dos livros

Os livros de historiadores voltam a ser importantes talvez por causa disto: queremos perceber como vamos estar à altura do que nos vai acontecendo.

No seu livro Sobre a Tirania - 20 lições do século XX (ed. Relógio d’Água), o historiador Timothy Snyder dá um dos conselhos mais simples que o passado pode dar ao futuro: “leiam livros”. Pode parecer um conselho interesseiro, um livro a dizer-nos para lermos livros. Mas há qualquer coisa nos tempos que correm — tempos de textos curtos e declarativos nas redes sociais — que efetivamente nos traz de volta aos livros. Trata-se da necessidade de “dar tempo ao tempo” ou, para ser mais palavroso, de reflectir sobre que sentido fará o nosso tempo no decurso da história humana. Aí, não se enganem, são os livros que nos irão guiar. Também outras épocas viveram imersas no texto curto — o século XVIII e a sua obsessão pelas cartas manuscritas — mas quando as queremos entender precisamos dos livros que então se escreveram. Da mesma forma, se quisermos viver a nossa época viveremos imersos em milhões de tweets e posts de facebook. Se a quisermos entender, teremos de ler os livros do nosso tempo. Eles são insubstituíveis.

O que é o Populismo, de Jan Werner Müller (ed. texto), é certamente um dos mais incisivos livros sobre as grandes mudanças políticas dos dois últimos anos. Tal como Sobre a Tirania, de Snyder, é também um livro influenciado pelos dias com pouco tempo disponível em que vivemos: um livro curto, fluido e claro sem, no entanto, ter os piores defeitos do tempo das redes sociais. Em vez de declarativo, é reflexivo. Em vez de querer ser definitivo, é um começo de conversa.

O ponto de partida de Jan Werner Müller é o de que o político populista é aquele que: 1) postula que o povo tem uma voz única; 2) postula que o que o povo pensa é aquilo que ele próprio diz; 3) opõe um povo puro e verdadeiro — aquele cuja voz é tomada pelo populista — a uma elite impura e corrompida onde vai acumulando categorias de gente, dos políticos aos intelectuais e aos artistas, mas também os imigrantes e os “cidadãos do mundo”; 4) a prazo, acaba por excluir do seu conceito de “povo” todos os que não concordam com ele.

A maior parte dos autores define o populismo moderno (no fundo, concordando com ele) como democrático mas anti-liberal. É assim a definição que Viktor Orbán deu ao seu projeto para a Hungria: construir uma democracia iliberal. Jan Werner Müller vai mais longe e conclui que o populismo não é apenas anti-liberal. É anti-democrático. O populismo escuda-se na trivialidade de que, em democracia, a maioria manda. É verdade, mas isso não chega para definir a democracia. Uma definição mais completa seria: em democracia, a maioria manda, mas a maioria muda. Para o populista, o povo tem razão, mas apenas uma vez: quando dá razão ao populista. A partir daí, não precisa mais de emitir sentença.

Enquanto lia os livros de Snyder e de Müller, fui lendo também o livro que o historiador Rui Bebiano, da Universidade de Coimbra, escreveu sobre Tony Judt: Historiador e Intelectual Público (ed. 70). Tony Judt é, de certa forma, o patrono de intelectuais públicos como Snyder e Müller — e talvez do próprio Bebiano também. Rui Bebiano, numa escrita límpida e inteligente, conta-nos como um historiador como Judt foi sendo obrigado a vir mais a público — pelos acontecimento à sua volta, e também pela doença que o levaria a uma morte prematura e que o obrigou a dizer mais depressa e de forma mais incisiva tudo o que queria dizer.

Há meio século, os filósofos dominavam mais o debate público com as suas doutrinas e sistematizações. Hoje, historiadores como Judt (e Snyder, e Bebiano) vêm ajudar-nos a procurar um fio condutor para as mudanças à nossa volta, mais com um sentido provisório e personalizável do que com uma ideologia pronta a usar. Vem à mente uma frase de um filósofo, Gilles Deleuze: “ética é estar à altura do que nos acontece”.

Os livros de historiadores voltam a ser importantes talvez por causa disto: queremos perceber como vamos estar à altura do que nos vai acontecendo.

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