A discreta anarquia nuclear

A Coreia do Norte adora proferir dantescos avisos ameaçadores. O mundo fica atemorizado. Pelo contrário, outros, que se movem na sombra, não avisarão.

Prescindo de, neste artigo, comentar (o que farei mais tarde) a irresponsabilidade com que quer o líder norte-coreano quer o norte-americano abordam a questão nuclear da Coreia do Norte. Apesar de eu respeitar imenso a forma como, ao longo de um século, os Estados Unidos têm genial e corajosamente contribuído para a cultura, a ciência, a tecnologia, a economia e a segurança europeia (morreram na Normandia para salvar europeus na 2ª Guerra Mundial), tenho dificuldade em, neste delicado momento, determinar qual daqueles líderes é uma maior ameaça para o mundo. E tenho dificuldade em compreender como os norte-americanos ainda permitem que o seu imaturo presidente continuamente ridicularize e diminua o prestígio de uma grande nação. Entretanto, a arrogância fundamentalista dos que se consideram “europeístas puros” (!...) apaga-se na absoluta irrelevância e falta de imaginação como em qualquer crise que ultrapasse as inócuas poses declarativas.

A atenção a um momento de (mais aparente do que real) risco nuclear merece também um comentário mais abrangente do que o ângulo específico da Coreia do Norte nos termos (parcialmente errados) em que está vulgarmente a ser comentado.

Enquanto é dedicada atenção aos países que desenvolvem novos programas de armamento nuclear, como são os casos do Irão (bem mais perigoso) e da Coreia do Norte, tende-se a ignorar que é mais preocupante alguma relativa anarquia nuclear que, nos bastidores, vulnerabiliza a segurança internacional. Apesar de tudo, é mais fácil tentar seguir os passos de um país que desenvolve um programa nuclear do que as ações difusas, ultra-discretas e geograficamente indeterminadas de indivíduos em concreto, de organizações terroristas, de grupos criminosos ou de responsáveis oficiais corruptos.

Nesta coluna já anteriormente abordei o grau de risco nuclear corporizado pelos norte-coreanos, aparentemente muito assustador mas na realidade menos grave do que pretende parecer. Esta é, essencialmente, uma guerra psicológica fortíssima que, desde há muitos anos, a Coreia do Norte exerce e que vence sistematicamente. Acresce que Kim é mais inteligente que Trump, embora ambos revelem disfunções. Contudo poderá ter interesse um conjunto de referências soltas que ilustrem a grande dificuldade de controlar a proliferação nuclear, designadamente a mais perigosa porque menos detetável, a dos agentes não estatais.

A ingenuidade e o desconhecimento começam por ser um problema neste domínio. Por exemplo, parece ser óbvio e linear que devem ser desmantelados os vastos arsenais de armas nucleares. É um erro de ignorância e ingenuidade, porque quando se desmantelam ogivas nucleares tem que ser guardado, algures, o respetivo combustível físsil, urânio ou plutónio. Sucede que pode ser mais difícil a um criminoso ou a um terrorista roubar um volumoso míssil nuclear ou o seu combustível nuclear interno do que furtar alguns quilos de urânio ou plutónio que são retirados do míssil e armazenados algures durante muitos séculos, com graus de segurança geralmente mais fracos do que os que rodeiam os mísseis nucleares. Paradoxalmente, em determinadas situações e em certos países, pode ser muito menos perigoso manter plutónio no interior de uma bomba nuclear de implosão.

A Agência Internacional para a Energia Atómica (IAEA) é considerada como um vigilante que impede a proliferação nuclear e que deteta atividades ilícitas. Todavia, ninguém produz milagres neste domínio. O programa nuclear clandestino do Irão desenvolveu-se durante muitos anos sob a apertada vigilância dos inspetores da IAEA, que nada detetaram até esse programa ser denunciado por um grupo de iranianos. O resultado dessa ineficiência é, em parte, a crise internacional com que agora nos deparamos.

No que se refere a urânio altamente enriquecido, por exemplo, entre 1993 e 2003 a IAEA só conseguiu “confirmar” o tráfico de 8,35 kg, o que não é suficiente para uma bomba nuclear clássica de urânio. Mas indicações de responsáveis locais indicam que só num local na Rússia desapareceram 18,5 kg de plutónio, suficiente para 3 bombas desse tipo com uma tecnologia média. Não constam da lista da IAEA desaparecimentos de urânio altamente enriquecido na base naval de Kaliningrad ou perto de Murmansk. Num dos principais países da Europa ocidental “desapareceram” quantidades apreciáveis de plutónio, facto que depois foi explicado como decorrendo de “erros contabilísticos” na inventariação, o que suscita dúvidas sobre a fiabilidade geral dos dados governamentais sobre os stocks desses materiais nucleares. Em 1994 foi intercetada na Alemanha uma pequena quantidade de plutónio excecionalmente enriquecido, cuja proveniência (de altíssima tecnologia) continua indeterminada.

No período crítico e caótico do desmembramento da União Soviética verificaram-se situações quase indescritíveis no âmbito da segurança de arsenais (os táticos, não os estratégicos), materiais e tecnologias nucleares. Nunca se saberá exatamente o que desapareceu e onde se encontra atualmente. Nos primeiros anos da década de 1990 a confusão nuclear nessa região foi substancial e presume-se que 1994 tenha sido o ano de maior nível de tráfico desse tipo, com 44 casos confirmados. A dimensão do aparelho militar nuclear é significativo. Em 1991 a URSS possuía cerca de 22.000 ogivas nucleares sub-estratégicas, por exemplo.

A partir dessa fase a segurança nuclear foi reforçada, mas ainda em 2002 um alto responsável russo reconheceu que em algumas instalações nucleares os sistemas de alarme funcionavam apenas em metade das ocasiões.

Não sendo fácil, é menos difícil do que se imagina a compra ou o roubo de uma arma nuclear. O seu fabrico exige anos, laboratórios sofisticados e dotados de equipamentos e materiais adquiridos em locais distintos. Encontrar técnicos competentes é relativamente fácil. Em 1997 um inofensivo estudante de uma das principais universidades ocidentais elaborou, como tese de licenciatura, um projeto de uma bomba nuclear com um reduzido volume, uma potência de 10 kilo-toneladas e um custo que é tão ridículo que, por segurança, nem referirei. As entidades de segurança ficaram perplexas e assustadas.

A seita Aum Shinrikyo desenvolveu um plano de terrorismo nuclear e em 1994 dispunha de cerca de 15 milhões de dólares para adquirir uma bomba, um valor que era uma ínfima parte do orçamento “militar” dessa organização. A al-Qaeda possivelmente dispõe de algum material físsil nuclear mas tem sido admitido que tal sucede, provavelmente, em quantidade insuficiente para a produção de uma bomba. Certezas não existem. Contudo, esse material certamente chegará para dispositivos de terrorismo radiológico. O ISIS tem desesperadamente operado no sentido de adquirir materiais e equipamentos nucleares ofensivos.

Poderia incluir neste artigo muitos exemplos que ilustram a confusão (que nunca será totalmente controlável) que povoa o âmbito da proliferação nuclear. Quando o mundo olha o atual problema norte-coreano deve compreender que este caso é grave mas, por outro lado, não deverá ignorar-se que a proliferação nuclear tem também faces que são muito menos visíveis mas muito mais perigosas. A realidade é bem pior do que refiro nas linhas acima. A inconsciência coletiva é, por isso, assustadora.

A Coreia do Norte adora proferir dantescos avisos ameaçadores. O mundo fica atemorizado.

Pelo contrário, outros, que se movem na sombra, não avisarão.

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