Villa romana de Pisões é agora a luxuosa casa das ervas daninhas

De Pisões só se encontra parcialmente exposto o que foi a residência de um latifundiário romano. A área relacionada com a exploração agrícola, habitações dos criados, celeiros e lagares está por escavar.

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A estação arqueológica de Pisões é uma das melhores, mais ricas e bem conservadas villa romanas do país. Porém, tem estado votada ao abandono, já não são feitas prospecções há anos e à sua volta, onde poderão existir mais vestígios, está a ser plantado um amendoal.

A sua construção está datada do século I e prolongou-se até ao século IV, situando-se a 10km de Beja. Trata-se de um testemunho notável de uma habitação rural, com 48 divisões dispostas em torno de um pátio central descoberto, onde vivia a família de um latifundiário romano, proprietário de uma importante exploração agrícola, que terá pertencido às elites urbanas de Pax Julia (Beja).

A estrutura habitacional, já estudada, apresenta ainda um grande tanque (piscina) com cerca de 40m de comprimento por 8,30m de largura e um edifício termal com hipocausto (aquecimento) que ainda hoje estão bem conservados.

A cerca de 200m da villa localiza-se o paredão de uma barragem romana, que teria uma albufeira com cerca de 340m de comprimento e capacidade para armazenar cerca de 33.000 metros cúbicos de água destinada a abastecer, para além da parte urbana, a actividade agrícola e pecuária da exploração.

Todos estes elementos fazem parte do conjunto urbano da propriedade que já foi prospectado e está visível. Mas falta fazer o levantamento da sua parte rústica, que abrangerá as estruturas habitacionais dos trabalhadores da exploração agrícola e os respectivos armazéns, lagares, celeiros e estruturas de transformação dos produtos agrícolas.

Os resultados de sucessivos trabalhos de levantamento arqueológico que foram realizados até 2010 “permitem supor uma maior extensão da villa romana de Pisões para além da área conhecida e intervencionada”, assinala o arqueólogo Miguel Serra. Tendo em conta que os vestígios encontrados se situam a cerca de 100m do núcleo central da estação arqueológica conhecida, “pode haver nesta área uma ocupação anterior ao séc. I (dificilmente comprovável com os dados que estão disponíveis) ou, então, poder-se-á estar, muito possivelmente, na presença da sua componente rústica”, sugere o investigador. Assim, é muito provável que a área ocupada pela villa romana de Pisões exceda largamente a área afecta à estação arqueológica e que é de 30.000 metros quadrados.

É este importante testemunho da presença romana nos chamados “barros de Beja”, descoberto por acaso no decorrer de trabalhos agrícolas, em 1964, que se encontra num confrangedor estado de abandono. As ervas daninhas cobrem as estruturas arqueológicas que foram escavadas, na sua maior parte entre 1967 e 1977, por equipas de investigadores orientadas por Fernando Nunes Ribeiro. João Sardica é um dos arqueólogos que participaram, ao longo de mais de uma década, nos intensos trabalhos de pesquisa, realizados de forma irregular e com “prolongadas interrupções” até aos primeiros anos da década de 80. Este investigador diz lamentar os actos de “vandalismo” a que tem sido exposta a estrutura romana. E questiona a “indefinição que prevalece relativamente à sua tutela e a manifesta incapacidade política” que têm impedido que sejam desencadeadas as “medidas necessárias para a sua conservação e valorização”.

Basta observar o mau estado de conservação da grande variedade dos mosaicos romanos que cobrem os pavimentos de muitas das salas, constatou o PÚBLICO numa visita recente à villa. Foi necessário recorrer à cobertura de vários painéis com gravilha — que agora está coberta de erva — para travar a degradação das tesselas policromáticas recortadas em materiais calcários e vítreos.

As composições geométricas e naturalistas que se observam nalgumas estruturas que ainda estão visíveis, de elevado nível estético com destaque para a representação de aves (pombas) e animais marinhos (uma enguia e um peixe), de diferentes períodos da história romana nos seus vários estilos decorativos e iconográficos, foram deixadas expostas aos elementos durante décadas. Também os frescos murais estão “hoje muito degradados ou mesmo perdidos pelo abandono a que foram votados”, denuncia João Sardica.  

Este investigador admite que o arquitecto que projectou a villa de Pisões “tivesse vindo de Roma, pelo requinte da traça arquitectónica” colocado na sua construção. Constata-se a utilização de “lajes de mármore com dimensões de um pé romano por meio-pé nos pavimentos”, especifica Sardica, que destaca ainda a descoberta de um friso em mármore de Carrara.

O futuro da estação arqueológica foi recentemente alvo de um protocolo — mais um dos vários que houve em 40 anos — entre a Direcção Regional de Cultura do Alentejo (DRCAlentejo) e a Universidade de Évora (UE), que é proprietária da Herdade de Almocreva onde se situa a villa romana. A instituição académica adiantou ao PÚBLICO que será dada prioridade “ao estudo e preservação do que está identificado e irá ser aprofundado o conhecimento do sítio arqueológico” através de métodos não invasivos, “não se excluindo no futuro escavações” dentro do perímetro com 30.000 metros quadrados que se encontra vedado desde 1980.

Fins agrícolas

Para o exterior desta área onde se sabe existirem abundantes vestígios arqueológicos “não está previsto o alargamento das escavações”. A instituição alega que este tipo de intervenção fica “dependente de sondagens que o possam justificar”.

Contudo, há um pormenor que pode vir a contrariar esta possibilidade. A UE lançou, recentemente, um “procedimento adjudicatório” para constituir uma parceria de utilização da Herdade de Almocreva, que tem cerca de 700 hectares “para fins agrícolas, de investigação e académicos”, que foi ganho por um “consórcio externo” (espanhol) em regime de responsabilidade solidária”, assinala a instituição académica. O objectivo desta parceria reside na pesquisa de “culturas anuais experimentais para efeitos de estudos, trabalhos de investigação e realização de estágios curriculares”, que garantem a “integração da exploração com actividades académicas”. Mas o que se observa revela a instalação de uma grande plantação de amendoeiras, cuja primeira fase, a preparação do terreno, implicou a lavra do solo numa profundidade que nalguns pontos expôs materiais que podem ser associados a estruturas arqueológicas. Esta actividade contraria a afirmação feita pela UE, que garantia estar a ser respeitada a distância mínima de 50m em redor da villa. A acção das máquinas que lavraram o terreno chegou a cerca de dez metros da vedação que a circunda.

A estação arqueológica continua vedada aos visitantes desde 2012 e está vigiada por uma mulher que foi contratada “irregularmente”, como reconhece a DRCAlentejo, no âmbito de um acordo entre UE e a Câmara de Beja e que não usufrui de qualquer salário. O seu trabalho de vigilância é pago com o usufruto da casa onde vive junto ao sítio arqueológico.

O centro interpretativo da estação arqueológica foi sujeito em 2012, quando não tinha qualquer vigilância, a um assalto e o seu interior foi vandalizado, permanecendo desde então sem janelas e sem portas.

Descoberta por acaso no decorrer de trabalhos agrícolas

O local onde está concentrada a riqueza arqueológica de Pisões era, antes da sua descoberta, um fértil campo de cultivo a cerca de uma dezena de quilómetros da cidade de Beja. O primeiro sinal da existência dos vestígios romanos surgiu em 1964, quando o proprietário da Herdade de Almocreva, José Joaquim Fernandes, ao ordenar os “trabalhos de lavoura estival profunda, deparou com algo que se opunha ao avanço normal da charrua”, recorda Fernando Nunes Ribeiro, que descobriu a villa juntamente com o arqueólogo Abel Viana.

O dono da exploração recorreu então a um tractor com maior potência e acabou por “colocar à luz do dia não as rochas mas três enormes pesos de lagar com a sua tradicional forma tronco-cónica e os respectivos entalhes”, ou seja, pisões, que eram utilizados no esmagamento de azeitona, descreve Nunes Ribeiro no livro Villa de Pisões.

Surpreendido pela dimensão do achado, o agricultor comunicou a sua descoberta a Nunes Ribeiro, que se deslocou ao local e confirmou estar na presença de artefactos utilizados no trabalho humano. Na impossibilidade de realizar qualquer investigação, pediu a José Joaquim Fernandes que “conservasse todas as pedras” com aquelas características, que se foram acumulando à medida que decorria a lavra. Para além dos pesos de lagar, o tractor desenterrou um pequeno capitel e um fuste de coluna até que, em Fevereiro de 1967, as máquinas colocaram a descoberto um fragmento de mosaico.

O tractor foi então afastado para se iniciar os trabalhos preliminares de sondagem que se revelaram promissores como os investigadores anteviam.

Surge então um problema: não havia dinheiro para prosseguir as investigações. Nunes Ribeiro recorda que os primeiros trabalhos de prospecção “só foram possíveis devido à contribuição monetária da proprietária da terra”, Carolina Almodôvar, mulher de José Joaquim Fernandes, que entretanto falecera. Rapidamente se tomou consciência do “fabuloso” achado arqueológico que a terra cobria havia muitos séculos. É chamada a atenção do então Ministério da Educação Nacional e da Direcção-Geral dos Monumentos Nacionais para se iniciar o processo de classificação da villa romana que, em 1970, foi classificada como imóvel de interesse público.

Concluído este processo, a escassez de verbas voltou a colocar-se e foi a vez de a Fundação Calouste Gulbenkian conceder subsídios para escavações que vieram a revelar uma casa de campo com 48 salas, uma piscina com 40m de comprimento por 8,30m de largura e dois capitéis visigóticos aliados à abundante cerâmica negra tardo-romana a indicar uma ocupação para além da época romana. Era o centro de uma exploração agrícola que existiu naquele local nos primeiros séculos da era cristã, com “requintes de construção e de decoração próprios das casas luxuosas”, observou Nunes Ribeiro.

Os trabalhos prosseguem até ao início dos anos 80 do século passado, expondo os perímetros de mosaicos e lajes de mármore, paredes revestidas a estuque pintado, o balneário, os lagos e piscina. Surge um espólio que se apresenta rico pela qualidade da baixela de mesa em terra sigillata e cerâmica estampada, assim como lucernas, vidros, bronzes, ferros, pedras ornamentais trabalhadas, etc.

Os desenhos nos mosaicos são quadrados, circunferências, triângulos, hexágonos, deltas, cruzes ou suásticas. Estas últimas acabaram picadas no pós 25 de Abril.

Os investigadores concluíram que a ocupação desta vivenda de campo “está documentada do século I ao século IV”.

Os investigadores concluíram que a ocupação desta vivenda de campo “está documentada do século I ao século IV”. A questão que se coloca é saber se nos dias de hoje seria possível salvaguardar o valioso património romano que está concentrado nos Pisões quando é conhecida a sistemática destruição de estações arqueológicas romanas e de outras períodos da história e pré-história local e regional que continuam a ser sacrificadas à emergência da nova agricultura alimentada por Alqueva.

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