Portugal reencontra-se consigo mesmo

Tirem-se as consequências deste caso, sim. Mas temo bem que as conclusões não passem da superficialidade habitual

Em Portugal, nos últimos anos, falou-se muito de soberania. Mas debateu-se pouco o que significa ser soberano hoje. Talvez por isso se tenha tornado fácil acreditar que tudo o que nos acontecer de bom é porque somos os maiores e tudo o que nos acontecer de mau é porque nos foi imposto de fora. Essa ideia é tão errada quanto a sua oposta, a que nos diz que tudo o que nos acontecer de mau é porque pecámos e merecemos castigo e tudo o que nos acontecer de bom só virá se aceitarmos as lições que nos chegarem de fora. Urge agora superarmos essas histórias da carochinha e descobrirmos o que nunca deveríamos ter esquecido: que já éramos e somos soberanos antes, durante e depois da troika, do euro, da UE. E que isso nos dá uma responsabilidade particular perante nós mesmos e até perante os outros.

Ora, com o caso das armas e explosivos roubados em Tancos, como com os incêndios de Pedrógão Grande, Portugal reencontra-se consigo mesmo. É melhor que se reconheça rapidamente naquilo que vê.

Qualquer tentativa de afastar o olhar, qualquer pretexto para desviar a atenção, só servirá para prolongar ainda mais o caminho do nosso atraso e nos afastar mais da ansiada soberania — não a da retórica, mas a real. Pois quando desaparecem as armas das nossas tropas isso significa que não fomos capazes de proteger uma dimensão essencial da nossa soberania. E quando essas armas e explosivos podem já ter passado fronteiras, isso significa que — numa era de enorme integração e interdependência — somos nós que estamos a pôr em causa a segurança e a soberania dos outros.

Não deixa de ser peculiar que num país tão vociferante na retórica da soberania um elemento essencial dessa soberania na prática — tão somente as armas e os explosivos das nossas Forças Armadas — estivesse depositado em paióis mal vigiados. Foi imposição de alguma instituição internacional? Aparentemente, não. Foi negligência nossa, ou seja, das nossas Forças Armadas, do Governo que as tutela, do Parlamento que o controla.

Os condicionalismos externos permitem explicar muita coisa, mas já não conseguiram explicar por que razão os diplomas de reforma do setor florestal, incluindo o travão ao eucalipto, estavam parados no Parlamento quando se aproximava mais uma época de fogos — que tragicamente haveria de se iniciar com o desastre de Pedrógão Grande. E agora também não permitem explicar por que razão a videovigilância estava desligada em Tancos há dois anos. Houve cortes? Sim, mas não é difícil encontrar itens de despesa castrense (15 milhões todos os anos para o Colégio Militar) de montantes várias vezes superiores ao que seria necessário para guardar capazmente as armas e os explosivos das Forças Armadas. E se a situação fosse tão desesperada que não permitisse mesmo a vigilância dos paióis, então nesse caso a obrigação constitucional das Forças Armadas deveria ser a de avisar o país para o que se estava a passar.

Tirem-se as consequências deste caso, sim. Mas temo bem que, depois do falatório, das investigações, das exonerações e das eventuais demissões, as conclusões não passem da superficialidade habitual. Temo bem que ninguém queira encarar a realidade de um país onde a retórica da soberania é permanente e grandiloquente mas que se demonstra incapaz de fazer o que tem a fazer quando está em causa um elemento tão central da sua soberania como — apenas e só — garantir que as armas das suas Forças Armadas não caem em mãos erradas.

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