Concordamos em discordar, mas comecemos por salvaguardar o euro

Uma solução simples e robusta para salvaguardar o euro é capacitar o BCE com um mandato explícito de credor de último recurso.

Em junho de 2012, representantes dos Estados-membros da União Europeia reuniram-se à volta de uma mesa para discutir o relatório Towards a genuine Economic and Monetary Union, que identificava os elementos essenciais para uma União Económica e Monetária (UEM) "estável e próspera", a implementar na década seguinte: um quadro financeiro integrado; um quadro orçamental integrado; um quadro de política económica integrada — garantindo as necessárias legitimidade democrática e prestação de contas.

Em junho de 2017, a Comissão Europeia apresentou um excelente “paper” de reflexão sobre a UEM. As opções apresentadas no documento envolvem a tomada de medidas em áreas-chave: completar de forma genuína a União Financeira; alcançar uma União Económica e Orçamental mais integrada; consolidar a legitimidade democrática e prestação de contas, fortalecendo as instituições da zona euro. A mensagem principal não mudou: a UEM ainda não é uma verdadeira união e é necessária uma maior integração. Cinco anos volvidos, foram apresentadas dezenas de propostas diferentes para o efeito.

As diferentes propostas mostram claramente que os especialistas, as instituições e os Estados-membros têm opiniões muito variadas, tanto sobre o futuro formato da zona euro, como sobre os princípios económicos que vão permitir que funcione. Tais discussões seriam até bem-vindas se tivessem resultado em acordos pragmáticos e funcionais. Na prática, produziram compromissos que foram sendo adicionados, em camadas, às regras e estrutura de governação existentes.

O resultado é que, hoje, a própria Comissão rotula tanto a governação como a arquitetura da zona euro como "complexas", e as regras orçamentais da UE como "demasiado complexas". Do meu ponto de vista, o que a Comissão quer dizer com “complexo” — o que não seria necessariamente negativo — é “insatisfatório” ou “muito insatisfatório”. E a experiência destes últimos cinco anos sugere que o desenvolvimento da zona euro será necessariamente um processo longo.

Num possível cenário positivo, os recentes acontecimentos no plano externo — a posição americana de retração, ou o “Brexit” — e no plano interno — a eleição de Emmanuel Macron ou a conjuntura económica mais forte — poderão dar um novo “élan créateur” à agenda europeia e acelerar o processo de integração. Nesse caso, um regime europeu de seguro de desemprego seria muito útil. Mas não nos podemos dar ao luxo de apostar no cenário positivo.

Penso que é improvável que se deem passos concretos para o aprofundamento da União enquanto a maioria da população europeia não estiver disposta a votar explicitamente nesse sentido. As próximas eleições europeias de 2019 deverão apresentar uma boa oportunidade para propor uma maior integração. Até lá, a prioridade passa por tornar o euro capaz de resistir à próxima crise financeira.

Esta prioridade foi já identificada num relatório da Fundação Bertelsmann e do Instituto Jacques Delors (hoje, em ipp-jcs.org, um comentário de Ricardo Cabral e outros sobre o mesmo) e, mais recentemente, num e-book publicado pelo Centre for Economic Policy Research (CEPR). Em síntese, conclui-se que o euro precisa de ter uma estrutura e entidade capaz de emprestar dinheiro aos Estados-membros quando a próxima crise financeira eclodir. Este tipo de entidade é designada na literatura económica como credor de último recurso (“lender of last resort” – LLR).

Foi criado em 2012 um ersatz de um instrumento desse tipo, denominado Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE). O MEE empresta aos Estados-membros que não se conseguem financiar devido a problemas de liquidez (e não de solvência). O MEE baseia-se nos orçamentos nacionais para responder aos riscos de uma crise financeira e, como contrapartida dos empréstimos, o país devedor tem de aceitar a implementação de um programa de ajustamento. Foi uma evolução positiva, mas as regras e os mecanismos de governação do MEE são complexos e os fundos insuficientes. A decisão de prestar apoio a um membro do MEE é tomada por unanimidade e requer aprovação prévia de alguns parlamentos nacionais. Este tipo de governação não permite tomar decisões imediatas perante uma crise financeira.

Os recursos totais do MEE têm um limite máximo de 500 mil milhões de euros, o que pode parecer muito, mas não temos ideia nenhuma de quanto poderia ser necessário se um país maior da União precisasse de ser ajudado. A próxima crise financeira poderá ser tão grande ou mesmo maior do que a última, tornando aquele montante insuficiente. As propostas existentes para remediar esta questão são um aumento dos fundos, com uma estrutura de “resposta rápida” de 200 mil milhões. Outra é fazer com que os Estados-membros concordem em transferir antecipadamente para o MEE uma fração da sua receita anual. Mas, mais uma vez, seriam sempre compromissos complexos e insuficientes para a última linha de defesa do euro.

Nos Estados Unidos, a recente crise financeira demonstrou que a capacidade de resposta rápida da Fed, um LLR com recursos ilimitados, tem sido fundamental para permitir conter possíveis catástrofes. As duas características mais importantes da Fed foram a rapidez da sua ação e o facto de dispor de recursos ilimitados.

Na zona euro, o famoso discurso de Mario Draghi de julho de 2012 (em que afirmou que o BCE faria “o que fosse necessário" para salvar o euro) resultou, na prática, na assunção temporária pelo BCE do papel de um LLR com recursos ilimitados. Novamente, “rápido” e “ilimitado” foram as palavras-chave.

Quer isto dizer que uma solução simples e robusta para salvaguardar o euro é capacitar o BCE com um mandato explícito de credor de último recurso. O problema é que esta proposta tem sido contrariada pelo argumento de que isso criaria um problema de risco moral, ou seja, que isso permitirá a alguns Estados-membros comportar-se de forma irresponsável sem medo de serem punidos pelos mercados.

A minha resposta para isso é que os Estados-membros deverão estar dispostos a aceitar penalizações extremamente severas no caso de comportamentos “irresponsáveis”, em troca de uma verdadeira função de LLR para o BCE. Além disso, esta solução é do interesse de todos os Estados-membros: mesmo a França e a Alemanha poderão eventualmente precisar de um LLR.

Trata-se de uma solução simples e robusta, que protegeria o euro da próxima tempestade financeira. E permitiria iniciar uma conversa construtiva entre os Estados-membros no sentido de uma UEM genuína, sem a espada de Dâmocles de um colapso completo.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

O Institute of Public Policy (IPP) é um think-tank académico, independente e apartidário. As opiniões aqui expressas vinculam somente os autores e não reflectem necessariamente as posições do IPP, da Universidade de Lisboa, ou de qualquer outra instituição

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