Overbooking médico

Espero ter esclarecido Paulo Sargento que há, efectivamente, médicos a mais.

Fiquem todos descansados, pois não irei ocupar o vosso tempo falando do triste episódio da retirada de um colega do interior de um avião de uma companhia aérea. Do que vos quero falar é do crónico overbooking nos concursos para a formação de especialistas, resultado do número excessivo de alunos nas faculdades de Medicina, agravado pelo número de licenciados no estrangeiro — portugueses ou outros — que tentam a entrada numa formação complementar, vulgo especialidade. Nos últimos anos, e de forma expectável, tem havido mais candidatos do que vagas.

Desta vez coube a Paulo Sargento vir perguntar, no PÚBLICO, se “há ou não médicos a mais”. Num artigo em que mistura tudo, acaba a perguntar se “temos incapacidade de formar médicos ou se as várias análises são feitas por quem está interessado na redução das vagas”. Só a desinformação pode explicar tais perguntas. E por várias razões:

1. O monopólio estatal da formação médica: em Portugal não há cursos privados de Medicina porque as propostas apresentadas não tinham qualidade. Quem o afirma é o presidente da A3ES (Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior), precisamente a mesma que obrigou ao encerramento do curso de Aveiro (público) por não cumprir os critérios exigíveis.

2. O número de médicos em exclusividade e “empregabilidade pública assegurada”: cabe à tutela definir como deve ser gerido o regime de exclusividade. Enquanto o actual regime vigorar, os médicos são livres de pedir a inclusão nesse regime, avaliados os prós e contras. Se o Ministério da Saúde mantiver o actual regime, quer Paulo Sargento concluir que está interessado na redução das vagas? Não fora o milhar de médicos que emigrou e haveria um elevado número sem “empregabilidade pública assegurada”.

3. O facto de haver médicos a mais: em 2016, os médicos que acabaram a especialidade foram seis vezes mais (seis vezes!) do que aqueles que se reformaram no mesmo ano. Então, porque tem Paulo Sargento a sensação de que há falta de médicos? Apenas porque confunde o número de médicos no país com o número dos que trabalham para o Estado no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Se há falta de médicos no SNS (como de outros profissionais — enfermeiros, técnicos, administrativos...) é porque o Estado os não contrata, ou pretende contratar pagando miseravelmente.

4. Os médicos e a indução da procura de cuidados médicos: o excesso de médicos não é só mau para os médicos. É mau para o país e, sobretudo, para os doentes! Num cenário de disputa pelos doentes, e dado que a prescrição de cuidados — em função da diferença de informação médico/doente — está muito dependente da vontade do médico, fácil é induzir a procura desnecessária de exames e tratamentos, com perniciosos efeitos na economia e na saúde.

Em conclusão: espero ter esclarecido Paulo Sargento (e com ele todos os que possam ter dúvidas sobre o assunto) que há, efectivamente, médicos a mais, e que o país só tem a perder se continuar a formar um número excessivo destes profissionais. Porém, a solução não está só na redução do numerus clausus, uma vez que tal só iria reduzir o número de candidatos formados pelas universidades públicas portuguesas, nem na abertura de cursos privados que, para terem qualidade, teriam que praticar preços que não deveriam ser concorrenciais com outros oferecidos em universidades europeias.

A solução passa por fazer um levantamento de todas as capacidades formativas e das necessidades do país, tendo em conta premissas como o envelhecimento da população, o número de previsíveis aposentações e o problema da protecção da maternidade (numa profissão que já deixou de ser maioritariamente exercida por homens), adaptando a elas o número de vagas a abrir.

É para isto que serve o Estado. Depois, lentamente, deixaremos de ter médicos a mais, pois a Medicina deixará de ser atractiva por ter perdido o reconhecimento social e o atractivo financeiro.

 

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