Se as palavras ainda significam alguma coisa

Portugal precisa de patriotismo. Sem patriotismo seria mais difícil termos um país sustentável (como bem lembrou o Presidente), querermos aqui viver ou regressar.

Enquanto filho mais novo numa família com cinco irmãos, eu juro que imagino perfeitamente a posição em que está Marcelo Rebelo de Sousa quando vai ao Parlamento no 25 de Abril e tem de dizer qualquer coisa que não ponha toda a gente de candeias às avessas. Não tenho senão empatia pelas circunstâncias que o levaram a fazer uma exortação a favor de "um nacionalismo patriótico e de vocação universal, não um nacionalismo egocêntrico, agarrado a um pretenso passado, recriado porque não real e insusceptível de enfrentar o futuro". Ainda assim, porque o mundo anda perigoso e as ideias confusas, acho que vale a pena dissecar este tipo de frases antes que, para contentar toda a gente, o discurso do próximo ano não contenha um apelo ao "paganismo cristão", à "bebedeira sóbria" ou ao "minimalismo rocócó".

Se as palavras ainda significam alguma coisa — um "se" dos diabos, nos tempos que correm — nacionalismo e patriotismo querem dizer coisas distintas e, em grande medida, opostas. Autores tão inconciliáveis como Álvaro Cunhal ou George Orwell conciliavam-se ao menos nisso. Patriotismo é um amor da pátria que não exclui outras afiliações (à humanidade, à solidariedade de classe, à comunidade religiosa, ao universalismo, etc.). Ao nacionalismo podemos definir como a ideia de que a única escala soberana possível é a da nação e, consequentemente, que a única organização legítima do sistema internacional é exclusivamente baseada no interesse nacional. Estou a usar uma definição generosamente neutral de nacionalismo, sem o confundir com a tese do destino manifesto de uma nação (excecionalismo americano, húngaro, francês e por aí afora) ou da superioridade hierárquica de uma nação sobre outras ("supremacismo", que já houve alemão, austríaco e de tantas outras cores e paladares). Hoje há que ter paciência e mesmo cautela, porque os nacionalistas de todas as estirpes ficam abespinhados à séria se não os tratamos com a deferência que julgam ser-lhes devida, tal deve ser a falta de confiança que têm nos seus argumentos.

O patriotismo reconhece o interesse nacional, mas não se esgota nele. Caso contrário, não conseguiria limitar-se quando o interesse nacional põe em causa valores universais. Nem sequer conseguiria corrigir-se quando o nacionalismo acaba ameaçando o próprio interesse nacional.

Querem exemplos? Eles não faltam nas galerias de horrores da história, mas para não abespinhar ninguém vamos para uma realidade mais próxima e comezinha.

Portugal precisa de patriotismo. Sem patriotismo seria mais difícil termos um país sustentável (como bem lembrou o Presidente), querermos aqui viver ou regressar, votar ou pagar impostos, cuidar do património ou divulgar a nossa cultura, ou simplesmente lutar pelo Portugal "livre, justo e solidário" de que fala a Constituição.

O mundo não precisa de mais nacionalismo. Mas se fôssemos a cair no erro de promover tal ideia, Portugal seria dos países mais prejudicados. Com o tamanho, as fronteiras, a economia e os emigrantes que temos, enveredar pelo nosso nacionalismo seria, inevitavelmente, fomentar o dos outros e equivaleria a dar dez milhões de tiros em pares de pés cá dentro e mais uns tantos lá fora. Na China e nos EUA o nacionalismo pode ser viável no imediato, embora sempre desagradável a prazo. Em países como Portugal, nem isso. Na Hungria, por exemplo, Orbán não é nacionalista por causa do interesse húngaro (ou não andaria a querer fechar uma das melhores universidades do mundo no seu país) mas por causa do interesse de apenas um certo e determinado húngaro em ter sempre mais poder e mais dinheiro.

Em suma: gosto de pensar que, se fosse chinês ou americano, os meus princípios fossem suficientemente fortes para me fazer rejeitar o nacionalismo. Sendo português, há outra razão mais do que convincente para me impedir de abraçar tal ideia: o meu patriotismo não deixa.

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