O eterno retorno do fascismo? Jamais!

Perante um eleitorado de extrema direita altamente mobilizado, unificado de forma inequívoca em torno da Frente Nacional, não há argumentação que contrarie a necessidade imperativa de votar em Macron.

Em 2010, o filósofo e ensaísta holandês Rob Riemen publicou uma pequena, mas importante, obra denominada “O eterno retorno do fascismo”. Neste ensaio, o autor traçava de forma eloquente o retrato das grandes sociedades europeias no dealbar do novo milénio e lançava uma análise acutilante e presciente aos movimentos políticos da segunda década do século XXI. Mais do que estabelecer um paralelismo entre os dias de hoje e os fascismos das décadas de 30 e 40, do século XX, Riemen abordava aquilo que considera ser a crise de valores europeus. Esta crise, explica, assenta no pressuposto de que os valores económicos, a procura incessante pelo lucro, haviam substituído os valores humanistas da Europa e seriam responsáveis pelo avivar dos movimentos neofascistas na Europa. Após a primeira volta das eleições francesas deste domingo, que garantiram a passagem de Le Pen, e de Macron, à segunda volta, saltam à vista três pontos essenciais de análise.

1. A camuflagem da extrema direita. Ao longo do último ano, assistimos à consolidação autocrática de Viktor Orbán, na Hungria, ao iniciar do primeiro processo de saída da União Europeia, com o Brexit, à eleição de Donald Trump e, mais recentemente, à eliminação do estado laico moderno fundado por Ataturk, na Turquia, com a afirmação autocrática de Erdogan. No caminho, escapámos por pouco à vitória da extrema direita na Áustria e na Holanda.

De todos os líderes europeus de extrema direita, Marine Le Pen foi aquela que, sem qualquer dúvida, melhor soube transportar para o mainstream um partido populista de extrema direita. Com quase oito milhões de votos (21,5%), Le Pen provou que a camuflagem que levou a cabo sobre as ideias do seu pai foi suficiente para atrair uma percentagem considerável do eleitorado francês. As razões para o triunfo eleitoral de Le Pen assentam, em grande parte, no clima de profunda instabilidade que a União Europeia vive e na exploração dos ataques terroristas que ocorreram em França nos últimos anos. A falta de resposta adequada por parte da UE às recentes crises económicas que assolaram a Europa, permitiram a ascensão de movimentos anti-europeístas. Cavalgando algumas das bandeiras ideológicas dos partidos de centro esquerda – nomeadamente, defendendo um reforço do Estado Social e do investimento público – a Frente Nacional parte agora para a segunda volta com a força eleitoralista da retórica demagógica e populista do anti-europeísmo e da extrema direita europeia. Depois do Brexit, a vitória de Le Pen atiraria a França para uma situação semelhante à vivida na América, com a ameaça permanente dos direitos de minorias étnicas, religiosas e políticas, bem como de pessoas LGBTQIA*. Para além disso, dada a importância da França na União Europeia, um cenário de saída do país do projeto europeu seria um dos passos mais desastrosos no sentido de destruição da União.

2. O castigo ao Partido Socialista e a penalização da esquerda. A trajetória percorrida pelo Partido Socialista francês sob a batuta de Hollande, Presidente que apresentou as mais baixas taxas de aprovação nacional da V República, afastou o histórico partido do seu eleitorado tradicional. Descontente com a resposta de Hollande à crise económica, e perante a incapacidade de recuperação económica e social do país, a resposta dos socialistas franceses à escolha de Benoît Hamon, eleito num processo de primárias, traduziu-se num castigo claro e inequívoco às decisões do PSF. O programa inovador e arrojado de Hamon não foi suficiente para travar as dissensões e diversas traições de vários elementos proeminentes do seu Partido, que levaram o eleitorado a concentrar forças entre Macron e Mélenchon. Se, por um lado, o voto em Macron se assumiu como uma tentativa de impedir, logo à primeira volta, a vitória de Le Pen, o voto em Mélenchon pareceu capitalizar uma parte do eleitorado de esquerda e socialista que é, também, anti-europeísta. As consequências para o PS serão mais visíveis após as eleições legislativas de junho, mas para já parece existir um risco elevado de implosão, com o continuar da saída de vários militantes e a possibilidade de criação de novos movimentos de esquerda.

3. O voto útil e indiscutível em Macron. Perante o cenário de confronto eleitoral entre Macron e Le Pen, a escolha deveria ser, para o eleitorado francês, clara. Macron realizou uma campanha assente na indefinição ideológica, afirmando-se como um sucessor de De Gaulle, capitalizando esquerda e direita. Contudo, esta indefinição ideológica, e a sua aparente inclinação económica liberal, parecem causar uma cisão no eleitorado de esquerda. Neste capítulo em particular, a posição de Mélenchon, o único dos grandes candidatos derrotados na primeira volta a não declarar apoio a Macron, assume particular relevância, por representar quase 20% dos votos do passado domingo. A abstenção de Mélenchon, a manter-se durante as próximas duas semanas, será um erro indesculpável do líder do La France Insoumise e poderá ser determinante na segunda volta. Perante um eleitorado de extrema direita altamente mobilizado, unificado de forma inequívoca em torno da Frente Nacional, não há argumentação que contrarie a necessidade imperativa de votar em Macron. Como referiu Hamon no rescaldo da noite eleitoral, “Je fais la différence entre un adversaire politique et une ennemie de la République”. E, no próximo dia 7 de maio, a escolha é só uma: votar a favor da democracia, da República e do projeto europeu, elegendo Emmanuel Macron.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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