Bruno Vieira Amaral no lugar do morto

João Jorge foi degolado aos 21 anos. A sua vida passou a ser a sua morte. Bruno Vieira Amaral resgata-o — era seu primo — num corajoso registo autobiográfico sobre a memória e a culpa: Hoje Estarás Comigo no Paraíso.

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Miguel Manso

“A morte de João Jorge é qualquer coisa grandiosa na minha ignorância”, diz Bruno Vieira Amaral. Um dia quis saber tudo sobre essa morte, contar a verdadeira história de um rapaz de 21 anos “que se dizia ter sido apanhado a roubar porcos, morto como um porco, com a faca usada para os abrir”. Foi degolado numa noite de 1985 e o corpo encontrado numas hortas, junto ao cemitério, a caminho de Vila Chã, Barreiro. Não há maneira boa de dizer isto. Apenas que o que se sabe de João Jorge antes disso é um imenso vazio e a sua vida passou a ser a sua morte. “Tudo o que ele possa ter feito, imaginado ou sentido deixou de ter importância por causa das circunstâncias da morte. O João Jorge foi a pessoa que morreu naquela noite, daquela maneira”, continua Bruno Vieira Amaral, que foi investigar o crime mas durante a investigação desistiu de um livro sobre a verdade dos factos para se entregar a uma tentativa de reconstituição íntima, resgate de memória e identidade, expiação de culpa, questionamento ético, procura do que existe na fronteira entre realidade e imaginação, verdadeiro e falso, o fio muito fino a que cada um se agarra para dar sentido à vida. Disso nasce um livro no qual perseguiu outra verdade, a literária, e é um exercício sobre um dos grandes medos humanos: o esquecimento.

Estamos no lugar da vítima. Geográfico, social, familiar. A mesma paisagem em que habitou a última parte da sua vida desde que chegou de Luanda, aos 13 anos. Passaram 32 desde a sua morte e é Sexta-Feira Santa. Cheira a maresia. Na maré baixa há centenas de vultos na água, andam à amêijoa. Bruno, como João Jorge, olha-os do lado certo do Tejo. Certo por ser o dele. “Sou daqui, desta maneira de ver Lisboa”, afirma, para dizer que o lugar de onde se é importa, tal como num romance importa a meteorologia. Por exemplo? Havia sol a reflectir-se na faca que matou em O Estrangeiro, de Albert Camus, e isso não foi irrelevante. “Ela apaga ou mantém as pistas do crime”, refere, remetendo para uma frase de W. G. Sebald — “a meteorologia não é supérflua para a história”. Cita-a no romance que acaba de publicar a partir da morte de João Jorge Rego, o primo, sem saber bem se foi a meteorologia a apagar quase tudo, até à hipótese da morte de João Jorge ter sido um crime banal, e deixá-lo livre para todas as possibilidades acerca do rapaz que — para ele e para o narrador — “nasceu na noite em que o mataram”. Era o fim do Inverno.

Agora o sol ainda não está a pique. Lisboa alinha-se na outra margem, uma fiada branca de recorte irregular logo depois do imenso azul da água. “Como é que escrevo um livro sobre alguém de quem não tenho nenhuma recordação, de que não guardo nenhuma memória?” — Bruno repete a pergunta inicial, a mesma que o guiou na escrita e na espécie de profanação que foi a sua entrada num território que não sendo sagrado pertence ao interdito, ao que se quer esquecer, mesmo que essa vontade de esquecimento nunca tivesse sido manifestada. Aconteceu.

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Bruno Vieira Amaral quis contar a verdadeira história de um rapaz de 21 anos “que se dizia ter sido apanhado a roubar porcos, morto como um porco, com a faca usada para os abrir” Miguel Manso

“Uma parte muito importante do livro, para mim, era porque é que eu o estava a escrever e como é que eu o conseguiria escrever”, continua o autor que se estreou no romance em 2013, com As Primeiras Coisas (Quetzal), vencedor do Prémio Saramago. Para tentar responder a essa pergunta põe a nu não apenas o processo de escrita, mas expõe-se num jogo literário que deixa clara a identificação entre narrador e autor, quase ao ponto de Bruno Vieira Amaral poder afirmar “o narrador sou eu”.

Não o disse na conversa que aconteceu num momento em que já teve tempo para digerir Hoje Estarás Comigo no Paraíso, título que replica uma frase do Evangelho segundo S. Lucas, na tradução recentíssima de Frederico Lourenço. “Aceitei correr esse risco”, justifica. O risco de revelar a escrita e a vida. “Quis incluir as indecisões, as dúvidas, as questões, os contágios. Quis que o livro fosse o próprio relato da sua escrita.” E enquanto tentava preencher o silêncio sobre a vida de João Jorge, vai ao seu próprio passado, o lugar onde vítima e investigador se encontraram, nem que fosse apenas enquanto habitantes da mesma geografia, bairro, contexto social, família. E o romance de formação de João Jorge é também o romance de formação de Bruno Vieira Amaral. Um é personagem, o outro o eu que narra.

“Visto que não tinha nenhuma memória do meu primo, pareceu-me interessante que ao mesmo tempo que o narrador fazia a investigação do que teria acontecido ao João Jorge fosse atrás, àquele período da infância em que ele morreu e recuperar memórias do que estava à volta. Reconstitui um ambiente, ou seja, vamos esquecer João Jorge naquele momento e assistir às minhas circunstâncias; onde é que eu estava naquela altura, quem é que eu era, como é que eu me apercebia das coisas, o que era o mundo para mim”, diz, assumindo um eu que é também o do narrador. “A voz é o fundamental no livro. Decidir contar na primeira ou na terceira pessoa determina o grau de envolvimento do narrador com os factos, é o código genético do livro e vai condicionar tudo o que se pode escrever a partir daí; as possibilidades afunilam-se. Ponho-me num colete de forças e sei que não posso libertar-me dele sem uma boa desculpa.”

O caminho indigno

Tudo nasceu do silêncio e da decisão se de aventurar por um “caminho indigno”. A expressão é do escritor. Partilha-a com o narrador: “Sentir que me aventuro por caminhos indignos faz-me acreditar que esse é o caminho certo, que apenas a violentação da memória de João Jorge, e não um qualquer panegírico ou ode à sua morte, justifica que escrevesse sobre ele.”

Voltamos ao presente, à esplanada em manhã de feriado à beira do Tejo, junto à antiga praia dos pobres do bairro que não tinham carro para ir a outras praias. Como Bruno, como João Jorge. É o escritor que fala agora: “Que direito tinha eu de ir mexer na morte do meu primo e com isso mexer com a vida de tanta gente?”

João Jorge morreu degolado em 1985 quando tentava roubar porcos. É esta a versão oficial. O resto são rumores e o apagão sobre uma vida malandra que se interrompeu aos 21 anos. Bruno tinha sete. Eticamente, o escritor condena-se, mas ter consciência da “imoralidade” não o demoveu de seguir os passos de João Jorge e de o procurar na memória, quase só escombros, dos que lhe sobreviveram no bairro da Margem Sul.

“O que seria de João Jorge?”, o que teria sido? São as muitas formulações da pergunta-guia. A pista mais forte, a óbvia e por isso menos interessante, encontrou-a no jornal O Crime, relato público assumido como “verdadeiro”, leitura partilhada no bairro. “João Jorge Rego, de vinte e um anos, natural de Novo Redondo (Angola), é a vítima desta ‘história’. Trabalhava numa empresa de empreitadas ligada à Quimigal, vivia no Bairro do Fundo Fomento, à Baixa da Banheira. Acabou os seus dias num curral de porcos, degolado, vítima da fúria de um grupo de cabo-verdianos.” A notícia ouve vizinhos, familiares, tenta reconstituir a noite de... “quando o jovem angolano, acompanhado por um amigo, José Dinis da Silva (conhecido pela alcunha de ‘Zeca Diabo’), se dirigiu a uma barraca pertencente a um tal Durão, cabo-verdiano. (...) Ali dentro, João Jorge foi atacado por um grupo de ‘patrícios’ do Durão, um dos quais acabaria por o degolar. Posteriormente, arrastaram o corpo uns cinquenta metros e abandonaram-no num curral de porcos, deixando atrás de si um rasto de sangue impressionante.”

Eram os factos “na sua transparência sórdida”, escreve o narrador. “Nesse mundo, o nosso, pequeno e infinito, com as suas dramáticas ninharias, as suas particularidades domésticas, os pais ausentes e as mães hiperprotectoras, um acontecimento como a morte de João Jorge, de que nos tinham chegado uns ecos fracos, era como se tivesse ocorrido em terra-de-ninguém. Se para a jornalista era sintoma de um país cada vez mais violento, para nós, crianças, era o fumo a dissipar-se de um incêndio que não podíamos ver.” Antes escrevera: “Vivíamos exilados na periferia e na infância.”

Na notícia havia o drama contado sem “estranhas amizades” entre literatura e jornalismo. O narrador preferiu seguir os rumores antigos. Já encontrara ecos deles justamente na literatura. “No dia em que iam matá-lo, Santiago Nasar levantou-se às 5h30 da manhã para esperar o barco em que chegava o bispo.” É o princípio de Crónica de Uma Morte Anunciada, de Gabriel García Márquez. Aparece transcrito no romance como uma pequena epifania. O eu que narra resume assim esse efeito de eco em relação a uma história familiar: “Santiago vai morrer. O leitor sabe. As outras personagens sabem. Ninguém pode impedir. Ninguém impediu que Santiago Nasar fosse morto pelos irmãos Vicário. Esventrado com uma faca de matar porcos.”

Passava a ser o eco da sua obsessão, a que o levou a caminhar pelos mesmo sítios por onde João Jorge andou. “A ficção é isso, quando aquilo que está à superfície já não chega”, diz o escritor.

E seguia a morte porque mais nada da vida breve e sem feitos heróicos ou marcantes da vítima sobreviveu a ela. “A cratera da ausência é mais produtiva. Por vezes crescem coisas maiores. Senti isso ao ler o processo do homicídio. Ele nunca está lá, nunca esteve aqui. O único momento em que ele está é na morgue. ‘Aqui está o corpo.’ De resto ele paira. Ele só é ali, naquela imagem quase simbólica, a do corpo inerte, na morgue.”

No cemitério não há uma placa com o nome e a data 1963-1985, “a noção da vida como um intervalo concreto” que perturba e comove o narrador e o autor. Ninguém reclamou os ossos de João Jorge, e sete anos depois do funeral, ele foi parar à vala comum. Voltava à invisibilidade. Ele era a notícia esquecida da sua morte, e o narrador culpava-se também de o ter esquecido.

“Dado o registo que escolhi para este livro, era quase impossível não falar de Crónica de Uma Morte Anunciada. Para mim, que estava a escrever, isso seria uma batota indesculpável. Não podia fazer de conta que não havia aqui um eco porque foi isso que senti ao ler o livro aos 21 anos. Para o narrador, foi uma epifania, sim. Para mim, nem tanto, mas notei esses pontos de contacto entre o crime do livro e o crime do João Jorge. Aliás, isso tinha-me já levado a escrever nas Primeiras Coisas uma história que é vagamente inspirada nele. O assunto não estava esquecido. É mais uma vez a questão do narrador e do autor.” Faz uma pausa. “Este narrador não é o mesmo de As Primeiras Coisas.

Em As Primeiras Coisas, João Jorge é Joãozinho Treme-Treme. Nessa altura, Bruno Vieira Amaral já estava a fazer a investigação para este livro; ainda não sabia o que seria, mas a perspectiva era a da vítima. Isso tornou-se mais evidente quando leu o romance de Kamel Daoud, Meursault, Contra-Investigação. O argelino Daoud escrevia a história que Albert Camus narrara em O Estrangeiro. Só que em vez de dar o lado do homicida, esteve no lugar do morto. Bruno escolheu o mesmo. No excerto que destaca em epígrafe encontrou um sentido para a sua ficção. “O último dia da vida de um homem não existe. Fora dos livros que narram, nenhuma salvação, apenas bolas de sabão. É o que melhor prova a nossa condição absurda, caro amigo: ninguém tem direito a um último dia, somente a uma interrupção acidental de vida.” Não lhe interessavam os detalhes materiais da investigação, do julgamento, do homem que matou João Jorge. O foco estava no lapso de tempo entre nascimento e morte, no acidente que põe fim. Só assim, fim. “Se me propusesse fazer um livro de não-ficção, estava limitado à realidade, aos factos. Não podia manipular. A própria história da investigação acabaria por ser supérflua. Para chegar a quê? A uma verdade prosaica, se calhar. Não é que quisesse inventar uma coisa mais espectacular, porque essa hipótese está no livro, a hipótese de ter sido uma coisa acidental. Não há sentido transcendental na morte dele. Aconteceu.”

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Miguel Manso

Dividido em duas partes, a da formação e recriação de um ambiente num bairro da periferia de Lisboa nos anos 1980, e o das hesitações da investigação, os avanços, depois da euforia o desânimo, e o assumir de contágios, o abandono às circunstâncias da escrita e uma viagem a Angola para tentar entender a identidade e explicar a ligação com uma personagem: Zeca Diabo. Um dia, João Jorge terá ido de férias a Novo Redondo. “Os miúdos estavam lá a meter-se com os primos e ele chegou e ameaçou-os miúdos: ‘Cuidado que eu sou de Luanda.’” Bruno imita o sotaque que era o de João Jorge como era o de muitos miúdos do bairro que tinham vindo da ex-colónia. “Está aí uma chave, compreender alguém que diz uma frase dessas. Ele identifica-se como de Luanda. Apesar de não ter nascido em Luanda, cresce em lá, é um caluanda, é um malandro, é um tipo convencido, mas ao mesmo tempo é um tipo generoso.”

E Bruno cria Osvaldo, um jornalista, para fazer a ponte com essa origem. Ele é central na busca de um mundo que é desconhecido para o narrador. “O que é Angola? Angola é Angola, mas para quem nunca lá pôs os pés, Angola o que é?” A Angola de muitos pactos de silêncio familiares, do 27 de Maio de 1977, outra vez do sentimento de exílio, lugar de onde veio a insubmissão de João Jorge.

O insubmisso

Talvez o primeiro impulso para escrever sobre João Jorge tivesse vindo daí, da atracção pelo insubmisso. “Talvez a minha questão com João Jorge passe pela aferição do grau de liberdade de um homem e, consequentemente, o seu grau de insubmissão. Submissão às circunstâncias, aos lugares, aos tempos, aos outros, a uma certa ideia de destino, o que poderíamos classificar como o seu carácter trágico que só a esta distância podemos distinguir claramente” (pág. 313). Bruno confessa essa sedução, mas antes: “Eu queria perceber se não foi precisamente essa insubmissão... se os grilhões que o prenderam não eram feitos dessa insubmissão; se, paradoxalmente, essa insubmissão não o tornava menos livre. Se calhar esteve aí a raiz daquilo que depois lhe veio a acontecer.” O escritor foi atrás de uma pessoa e acabou por transformá-la em personagem. O vazio, a falta de memória, a culpa por não se lembrar transformou-se em quê? Ou seja, o que é que o autor sente por João Jorge, personagem do seu romance Hoje Estarás Comigo no Paraíso? “Sinto admiração.” A resposta à pergunta que se segue não sai de imediato, é como se Bruno relesse o tudo, refizesse o percurso, desse outra vez os mesmos passos hesitantes e calculados em direcção à morte do primo.  “Porque ele tem muito do que eu não tenho, ou tudo o que ele tem eu não tenho. Sempre fui muito medroso, muito cuidadoso, sempre calculei muito os riscos, nunca me expus a grandes perigos, muitas vezes preferi ser um cobarde vivo do que um herói morto. Há no comportamento dele alguma coisa de heróico, no sentido do heroísmo impensado, que não é vontade de glória, mas é o heroísmo trágico de fazer o que tem de ser feito, quase por instinto, sem pensar bem nas consequências. Fazer. E que é algo muito clássico, o que o define são as acções e não o pensamento que elabora sobre ele si mesmo.”

Falamos da personagem. “Há um lado de recriação assumido, até de alguma violência, porque não posso falar por ele e tenho de assumir isso com o leitor. Eu não quero falar por ele. Sou eu a tentar percebê-lo, não é ele a falar.”

Ao longo do livro, nunca se ouve a sua voz, nunca se sabe o seu pensamento, a não ser pelo filtro dos outros. Isso faz regressar à dimensão ética. “Ao tentar percebê-lo, já há nesse esforço alguma violência, uma violação. Temo a ideia de que a ficção serve para gerar empatia, e é tudo muito bonito. Não é só assim. Para chegarmos ao outro, muitas vezes temos de fazer sangue. Quando andei a tentar pensar o que é que incluía, o grau de exposição não foi só em relação a mim; foi também em relação aos outros e às próprias personagens, as completamente inventadas. Quando falamos em nos pormos na pele do outro, vemos nisso normalmente uma coisa generosa, de empatia. Esse acto não tem só um lado humano, simpático, porque os outros, como nós, são capazes de coisas terríveis. E quando estamos a observar os outros — e o escritor observa —, estamos a roubar os outros. Tenho coisas no livro que roubei, não há outra forma de pôr as coisas. Roubei. Não é o roubar literariamente embelezado. Roubei mesmo. Isso é um acto de violência, que espero que se justifique pelo resultado final. É o que espero.” Pega no telemóvel e mostra uma mensagem que recebeu naquela manhã. O pai de Bruno, personagem da história, um pai ausente na ficção e na realidade, que voltava sem aviso e a quem ele roubou frases e vida para este romance, lera o livro. Como no livro, chamava-lhe ali Dom Bruno. E aprovava. Bruno sorri. “Fiquei muito aliviado.”

Bruno Vieira Amaral já deu muitas entrevistas, já falou muito sobre este romance que escreveu porque quis, no tempo que quis, até ficar cansado dele e achar que não havia mais nada para dizer. “A partir de certa altura, quando digo ‘é este o livro que vou escrever’, tenho de pôr tudo. Não há ‘vou pôr só um bocadinho’. Tenho de ir a jogo com tudo o que tenho e no processo alguma coisa pode partir-se. Em mim, na minha relação com os outros. É o risco que corro.” Há um silêncio, breve. “Às vezes tenho medo. Houve momentos, já tinha dado o livro à editora, em que pensei ‘não, não posso pôr aquilo’. Tive dúvidas. Mas...”, encolhe os ombros “quod scripsi is scripsi”.

Quem leu As Primeiras Coisas reconhece o território, as rixas, a dificuldade de integração de quem chegou das ex-colónias em 1975 com uma população que migrou de ambientes rurais; um mundo marginal, de exilados no próprio país. Era a Margem Sul operária retratada na paisagem literária do Bairro Amélia através das personagens que o habitam; mas o leitor reconhece também o fulgor narrativo, a atenção ao pormenor, à linguagem, a uma crueza que não é só estilística. É a que mais se aproxima de uma ideia de verdade que não se coaduna com fazer bonito ou escrever bonito. Aqui, esse desvelar atinge outras proporções. É mais cru, lancinante. E ao mesmo tempo de um grande lirismo, mas a fugir do adorno. No livro cita Sertões, de Euclides da Cunha, quando anda à procura da linguagem e declara o “fascínio pela poesia substantiva das pedras.” É por aí que Bruno Vieira Amaral quer andar neste seu segundo romance, onde revela tudo porque não conseguiu ver este livro de outra forma.

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Miguel Manso

É por isso também que Hoje Estarás Comigo no Paraíso é também o seu processo de criação. O autor foge dos palavrões metaliteratura ou metaficção, mas quis aproximar-se da “reflexão sobre a própria literatura e a própria ficção. Era um desafio”, afirma. “Quando fui à procura da campa do João Jorge e passei pelos lugares por onde ele teria andado e no local onde foi morto, essa deambulação suscitou-me questões que eu ia anotando, e a certa altura percebi que essas notas eram também o livro. Tirei-as para me organizar, para manter referências, mas percebi que uma parte importante sobre o livro seria essa reflexão sobre o próprio livro.”

A contaminação

Nesses passos ouviu muita gente e leu muito. Aceitou os contágios que serviam para se estruturar. Quer lhe trouxessem a dúvida ou lhe revelassem um caminho. “Que servissem à organicidade do romance”, outro palavrão para referir a matéria viva, a respiração da escrita. “É um livro que mostra as costuras, e quer que a costura seja o próprio fato. Mostra o artifício, mas, mesmo mostrando o artifício, quer que haja magia.” Mesmo nas notas de rodapé — outra recorrência em relação a As Primeiras Coisas — que funcionam como um contínuo da narrativa — não são explicativas. “Isto é literatura, não é a vida real. Sei que há livros em que gostamos de mergulhar e esquecer que aquilo é um livro, mas eu queria produzir outra coisa. Isto é ficção, foi costurado assim, é um fato, está com as costuras visíveis. Agora vê lá se te serve.”

Serviu, ao escritor? “Fui-me sentindo cada vez mais confortável à medida que senti que ia encontrando o tom certo. A verdade sobre o João Jorge, a verdade sobre a minha família, a verdade sobre mim, deixou de ser o fundamental. O fundamental passa a ser o romance. Se aquilo que eu vou pôr agora faz sentido no romance ou não faz; se a estrutura da segunda parte vai quebrar com a primeira ou não, se vai parecer um outro livro. Isso é que passa a ser fundamental. Todas essas questões da verdade, do artifício, desapareceram da minha cabeça, e a preocupação passa a ser: o que é que funciona? Isto está vivo, não está vivo; está a respirar? Interessa que no final sinta que aquilo é um organismo. Todas essas questões de quem é João Jorge a certa altura são secundárias.”

Nas costuras vê-se a falha e o acerto. Mas é sobretudo a falha que mantém o livro vivo, no que há de revelação de fragilidade, do mal, do medo, do precário, da ruína no seu paradoxo de poder ser ponto de partida para qualquer outra coisa; do inacabado. E estão as influências. Além das já referidas, há Mário Vargas Llosa, Kavafis, Teju Cole, Luandino Vieira, Julian Barnes, Elena Ferrante para a escrita sobre a infância, as memórias de Adolfo Maria sobre Angola... E a Bíblia a perpassar.

O narrador lê um ensaio de Margaret Atwood, Negotiating with Dead. A escritora americana diz que talvez toda a escrita tenha como motivação profunda o medo ou fascínio pela mortalidade, pela imagem arriscada de resgatar alguma coisa ou alguém da morte. Bruno admite: “Quando era miúdo, pensava que ia morrer a qualquer momento. O terror da morte do narrador é o meu. Tem que ver com o tipo de educação que tive, a religião [é um sem religião numa família de testemunhas de Jeová], a ausência do meu pai. Tudo isso contribuiu para um terror primitivo permanente em relação à morte que me fragilizou em certas coisas, que me tornou uma pessoa um bocadinho insegura, cheia de medos. Mas ter medo é bom.”

O medo andou sempre por aqui, mas não se nota no rosto de João Jorge, revelado numa foto tosca, a que vinha na notícia d’O Crime. “Um miúdo, tímido”, diz Bruno, uma vida interrompida, como algumas ruínas que permanecem na paisagem. Era para ter essa ideia no título, inspirado em Daoud; a ideia, circular, de que ninguém tem direito ao último dia, mas apenas a “uma interrupção acidental da vida”.

Sem trair o espírito do livro, mudou-o para o versículo de Lucas. “Quando no momento da crucificação um dos ladrões pede a Jesus para ser lembrado e não para ser salvo, tive a chave deste livro. Se Jesus o salvasse ali, só estaria a adiar a morte física. Claro que há aqui uma dimensão religiosa, mas lembrar é uma forma de o trazer de volta à vida mesmo que em espírito. É sempre a memória: lembra-te, não te esqueças de mim.” É também por isso que João Jorge, o rapaz que veio de Luanda para a Margem Sul, tem o mesmo nome da personagem resgatada da morte no romance de Bruno Vieira Amaral. “Queria tirá-lo um bocadinho dessa morte que apagou tudo.”

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