Vícios Privados, As Idades de Lulu, ou como distinguir erotismo de pornografia na TV

ERC absolve CMTV da emissão de dois clássicos do cinema erótico durante a madrugada por considerar que não tinham como “propósito essencial excitar o público”.

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Erótico ou pornográfico, eis a questão PAULO PIMENTA

Era uma decisão difícil aquela que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) tinha de tomar: serão pornográficos ou apenas eróticos os filmes Vícios Privados, de Tinto Brass, e As Idades de Lulu, de Bigas Luna?

A questão foi suscitada pela queixa de uma telespectadora que se deparou com a emissão destes filmes nas madrugadas de 2 e 3 de Dezembro na CMTV. E a resposta não é óbvia, reconhece-se na decisão da ERC de 14 de Março.

A queixosa mostrava-se “escandalizada” com o que viu ao sintonizar o serviço de programas “de madrugada”, já que “em vez de [si] poderia ter sido uma criança ou jovem adolescente”, considerando que “tal conteúdo, de tal modo explícito, [define-o] como escandaloso e imoral, um atentado à formação da personalidade e aos bons costumes”.

Na réplica, a CMTV alegava que os filmes “são verdadeiras obras cinematográficas com natureza artística”, com “um contexto e uma história” em que “o enredo não se esgota nos actos sexuais mostrados”, sendo apenas “um complemento ao filme e não o núcleo central da história”. Isto além de terem como realizadores reconhecidos pela sua carreira artística.

Vícios Privados é um filme de 2003 que conta seis episódios da vida íntima de casais, “curtas passagens que mostram aspectos da sua vida sexual”. “Todos os capítulos que compõem o filme são marcados pelo erotismo e existem várias cenas de nudez. No entanto, o acto sexual nunca é apresentado de forma directa, com exposição total”, afirma a ERC. Já a obra que o catalão Bigas Luna filmou em 1990 a partir do livro de Almudena Grandes “apresenta variadas cenas de nudez das personagens e diversos momentos de interacção sexual. Em nenhum deles está visível o acto sexual em si, embora este esteja representado num jogo constante de sombras e visibilidade”.

Para se defender, o canal cita depoimentos de Francisco José Viegas, escritor e intelectual, Paulo Branco, produtor de cinema, e do jornalista cultural Fernando Sobral, e estende-se em considerações sobre os filmes em causa, a obra dos realizadores, as distinções entre pornografia e o erotismo, o cumprimento das regras – horário de exibição e sinaléctica de conteúdos susceptíveis de ferirem sensibilidades – e ainda a competência (ou não) da ERC para julgar o “bom gosto e moralidade dos programas exibidos”.

Mas era isso que a Entidade era chamada a fazer. A Lei da Televisão impede os canais abertos de emitirem filmes pornográficos, permitindo no entanto a emissão de conteúdos eróticos entre as 22h e as 6h. “Admite-se que os dois filmes em apreço possam gerar dúvidas em alguns telespectadores acerca da sua natureza”, lê-se na deliberação.

A ERC enumera os critérios segundo os quais um filme é considerado pornográfico, entre os quais apenas três se aplicam: a existência de “actos sexuais explícitos sucessivos, reais ou marcadamente realistas, prolongados ou repetidos ao longo do programa”, a “ausência de propósito intelectual, estético ou criativo” e o “propósito de excitar sexualmente o público”. Os actos sexuais devem ter “presença explícita da genitália, válida para casos de penetração, masturbação, etc”, acrescenta-se.

A decisão foi favorável à CMTV, com um argumento de que o “propósito de excitar sexualmente o público é a condição imprescindível para que um conteúdo possa ser considerado pornográfico”. Ora, considera a ERC, os dois filmes em causa “são consideradas obras de arte cinematográfica, integradas na categoria do erotismo, que lhes garante, assim, o ‘propósito intelectual, estético ou criativo no programa que apresente actos sexuais’”.

A ERC admite “dúvidas” dos telespectadores uma vez que os filmes apresentam, em parte, “‘actos sexuais explícitos sucessivos (...) prolongados ou repetidos’”, uma vez que “são mostradas cenas de masturbação ou sexo oral, com ‘presença explícita da genitália’, mas sem exposição prolongada”. E alega ainda que “a penetração vaginal ou anal é em ambos os casos sempre apenas sugerida, em cenas de grande carga erótica, para a qual contribui esse jogo constante de mostrar e ocultar a interação dos corpos”.

Vai a ré absolvida e até promete ter adquirido mais uma dúzia de filmes daqueles realizadores para passar de madrugada. 

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