Que da musical tarde lusitana, por ritmos há muito explorados, passaram ainda além da Taprobana

O Ensemble Aga Khan reuniu-se para tocar e dançar com artistas oriundos do Brasil, da Guiné, do Bangladesh e da Gâmbia, bem como portugueses de etnia cigana. Em comum, todos têm o facto de viverem em Lisboa.

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Nuno Ferreira Santos

A sexta-feira estava chuvosa de mais para que alguém se pudesse imaginar nos trilhos da Rota da Seda, perfumados com os aromas exóticos, soalheiros e sedutores do desconhecido. Ainda assim, um cantinho da cidade conseguiu fugir à intempérie e tornou-se um oásis de mistura artística durante umas horas.

Foi a Sala do Arquivo dos Paços do Concelho de Lisboa. Uma das mais simbólicas da câmara municipal, esta sala, forrada com antigos missais, livros de meditação religiosa, compêndios históricos, enciclopédias artísticas, histórias trágico-marítimas e pesados volumes de “As Mil e Uma Noites”, entre muitos outros, nunca teve tanta animação. Habitualmente aberta ao público para conferências sérias, a Sala do Arquivo recebeu na sexta-feira o Ensemble Aga Khan e um conjunto de músicos imigrantes para uma tertúlia. O resultado foi um concerto quase espontâneo e totalmente improvisado, uma vez que a maioria dos artistas nunca se tinha cruzado antes.

O Ensemble Aga Khan é um grupo musical que incorpora instrumentistas de diversas nacionalidades. Esta semana deram três espectáculos em Portugal e, por fim, apresentaram-se na Câmara Municipal de Lisboa para tocar e dançar com artistas oriundos do Brasil, da Guiné, do Bangladesh e da Gâmbia, bem como portugueses de etnia cigana.  Todos têm em comum o facto de viverem em Lisboa.

Mostrou-se “a capacidade de mostrar a toda a gente que a música tem uma linguagem universal”, disse já no fim o saxofonista Carlos Martins, alentejano de Grândola, que entrou sem hesitar nos ritmos propostas pelos outros.

Tudo começava com o batuque fugidio da tabla, dois pequenos tambores de origem indiana que deixavam os sentidos despertos para o que se seguia. Entravam depois os inconfundíveis sons do rubab afegão, do dutar e de uma harmónica grande. Pouco depois, a voz de um rapper africano, que cantava as suas palavras de sempre acompanhado por aquela cacofonia de mundo. Sem nunca se terem cruzado, conseguiram construir uma melodia própria, cada um com os instrumentos e as referências que traz às costas.

A dada altura, um bailarino do Bangladesh – que, irrequieto, abordou várias mulheres da plateia e convenceu-as a dançar na clareira aberta a meio da sala – já estava a abanar-se ao som de música cigana, tal como já antes dançara ritmos mais familiares. A jam session terminou com “Sodade”, de Cesária Évora, cantada quase a capella, não fosse o som quente do saxofone ter dado o mote.

No fim, Carlos Martins era um homem feliz. Para explicar o que ali se passara, falou de Al Mutamid, o rei poeta do Al-Andalus. “Se eu fizer um trabalho fantástico, daqui a mil anos as pessoas vão dizer ‘em Beja nasceu um poeta famoso, em Grândola um grande saxofonista’ e ninguém vai querer saber se sou árabe ou o que quer que seja”, disse. Karim Merali, da Fundação Aga Khan – que, com a câmara municipal, promoveu este encontro – concordou. A iniciativa serviu para “demonstrar que a música é realmente uma arte e uma linguagem global”, afirmou.

O vereador dos Direitos Sociais da autarquia entusiasma-se a falar da importância destes grupos informais de músicos para comunidades locais. É também através deles, explicou João Afonso, que se pode ter um impacto positivo nos diferentes bairros, mais ou menos problemáticos. E que depois esse impacto se espelhe na cidade.

Como que a provar o dom de universalidade da música, os convivas subiram depois para o Salão Nobre, onde decorria um concerto da Orquestra Académica Metropolitana inserido na Semana da Juventude de Lisboa. Com os seus trajes típicos, puderam ver os alunos da Academia Nacional Superior de Orquestra – com impecáveis vestidos ou fatos pretos – a interpretar peças de Francis Poulenc e Arthur Honegger.

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