Pôr o rap da Margem Sul no património cultural português

A Hit Rádio e o Museu Nacional de Arte Antiga juntam-se numa iniciativa para divulgar o rap da velha e da nova escola da Margem Sul. Uma comunidade independente com milhares de views no YouTube e outros tantos seguidores no Facebook.

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A SMS está no ar — e na net — a partir de hoje e até dia 24, com uma dezena de músicas por hora feitas por rappers da velha e da nova escola. Chullage (com B Skilla), Mortex, Vulkanuz, Os Miny BoysThing, Malabá, Nucho, Dice, Orteum, TNT, Fizz, Don Nuno e Silab n Jay Fella são nomes em destaque André Cepeda

Muitos rappers da Margem Sul dificilmente se esquecerão daquele dia de Maio de 2007 em que o ex-ministro Mário Lino chamou a Margem Sul de “deserto”. “Não há cidades, não há gente, não há hospitais, nem hotéis nem comércio”, afirmou.

O episódio foi e continua a ir parar às rimas, como numa canção recente dos MCs TNT e Blasph, MS Pride. “Chamam-lhe o deserto/ o mais perto do céu/ mais perto do Tejo”. No final, o orgulho acaba por ganhar à raiva. Afinal, estamos a falar da Margem Sul, onde fica Miratejo, considerado por muitos o berço do hip-hop português. Afinal, estamos a falar de um território incontornável do mapa musical nacional, independente e do-it-yourself. Já dizia Chullage: “Embora para muita gente este lado não conte/ (…) este lado é a fonte/ banda-sonora deste lado da ponte”.

É precisamente essa “fonte” que a Hit Rádio, estação da Grande Lisboa focada no hip-hop e na música pop, vai divulgar na Semana Margem Sul (SMS), numa parceria com o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA). A SMS está no ar – e na internet – a partir desta sexta-feira e até dia 24, com quase uma dezena de músicas por hora feitas por rappers da velha guarda e da nova escola, entre alguns temas em primeira mão. Chullage (com B Skilla), Mortex, Vulkanuz, Os Miny BoysThing, Malabá, Nucho, Dice, Orteum, TNT, Fizz, Don Nuno e Silab n Jay Fella são alguns dos nomes em destaque. No Facebook dos projectos e da Hit Radio já se podem ver os vídeos, as imagens e os teasers que os rappers andaram a fazer no MNAA. Incluindo as fotos de família tiradas por André Cepeda (fotógrafo portuense habituado a trabalhar entre as margens e para lá delas), com os Painéis de São Vicente, do século XV, a servirem como pano de fundo.

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A cada bairro a sua rima

Esta parceria com o MNAA surgiu de “uma vontade em estabelecer um diálogo entre o passado e o presente, mais exactamente as forças vivas do país”, explica Jan Le Bris de Kerne, director de programas da Hit Rádio Portugal, estação lançada em terreno nacional no ano passado, com sede em Sobral de Monte Agraço, e integrada num grupo de rádio marroquino. Uma combinação improvável numa tentativa de aproximar públicos, meios sociais e culturais normalmente afastados. “As emoções artísticas não devem ter fronteiras, nem de classe social, nem de idade, nem de raça, e quem diz o contrário é ignorante”, nota Jan, francês a viver em Portugal há oito anos, e há oito anos a pensar “no ouro que os portugueses têm entre as mãos e não aproveitam”. “Estes rappers fazem parte do património cultural português tal como os museus, tal como fado.”

Para Malabá, embaixador do rap de Paio Pires, esta é uma oportunidade para discutir “a noção de cultura” no ecossistema do hip-hop, em particular no da Margem Sul. “A verdade é que o rap da Margem Sul não é igual a nenhum outro, e só por isso tem um peso cultural especial”, diz. A cada bairro a sua rima, a cada vivência a sua identidade.

O facto de a Margem Sul ser um território com muitos imigrantes de primeira, segunda e terceira geração, sobretudo de origem africana, traz também diversidade à música, entre influências de genealogia múltipla. Há rap do mais clássico ao que incorpora novas gramáticas como o trap (vejamos Dice, nova escola, ágil, incandescente e magnético); do mais virado para assuntos do coração ao mais interventivo e ácido (sigamos L.O.P e Vulkanus, velha guarda, a sabotar o racismo, a xenofobia e o classismo com estilo e precisão). Apesar das diferenças entre todos, é rap de olho aberto, não domesticado, onde se drena impurezas e se procura semear o empoderamento individual e colectivo, a auto-estima das comunidades (ouçamos Nucho e a canção Vou Sonhar, com Kid Mau, e Mortex, com Carina Semedo, em Assim Não Dá). E apesar de não estarem representadas mulheres na SMS, à excepção de um elemento na banda Mundo Escuro, também as há: Juana na Rap, Shiva, Ticha, Red Chicas ou LaDy R.

Para Nucho, rapper do Miratejo com ligações a Luanda, o sentido de comunidade é fulcral para expandir e fortalecer o rap da Margem Sul. “Há uma parte que depende de nós, de sermos mais unidos, de organizarmos o nosso circuito, de não estarmos à espera dos outros”, afirma. Mas isso não chega quando há discriminação sistémica e barreiras institucionalizadas. “Têm de nos deixar agir para depois nos avaliar. Se tu não partes do mesmo sítio é mais difícil chegar à meta”, assinala Nucho. “O que falta realmente, e falo do rap em geral, é alguém que acredite que isto é feito como música, como arte. Muita gente, quando se fala de rap, diz ‘ah, não’… Então quando é da Margem Sul, pior”, diz por sua vez Né Jah, nome importante do rap crioulo.

Segundo os músicos, o preconceito dificulta a comunicação – para todos. “Não é perante os rappers, é perante a população da Margem Sul em geral. Quando fui para a universidade perguntavam-me se havia homicídios na rua, se se podia andar na rua”, conta Nucho. É um cocktail tóxico de classismo, elitismo, racismo e centralismo. “Mais do que a raça, é uma questão de estratos sociais”, observa Nucho. Para Malabá, a questão racial é incontornável. “Se fosse branco de olhos azuis seria mais fácil comunicar com a maioria das pessoas. A primeira ligação é mais fácil com ele do que comigo. Isso é geral da raça. Portanto eu vou ter de me esforçar e trabalhar duas ou três vezes mais do que um branco.” E apesar de tudo isso, têm milhares de seguidores no Facebook, outras tantas views no YouTube, que em alguns casos chegam aos milhões. A “Lisboa invisível” de que muitas vezes se fala é, afinal, invisível para quem?

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Não é uma “questão de vitimização”, nem de procura de legitimação pelo status quo. Trata-se simplesmente de “igualdade de oportunidades”, da programação à imprensa, diz Mortex – mas sem desvirtuar a ética e a estética do-it-yourself. Apesar de haver sites que dão protagonismo ao hip-hop (H2Tuga, Rimas e Batidas ou Rap Notícias), inclusive àquele de que aqui se fala, o circuito da imprensa musical ainda é fechado e circular. “Dos meios de comunicação às instituições culturais é preciso mais diversidade e abertura”, nota Jan.

E a valorização também tem de partir de casa, lembram Dice e o trio Miny BoysThing, colegas do Bairro da Jamaica. “Antes havia mais concertos e mais associações culturais na Margem Sul”, refere Dice. “Vários rappers têm milhares de seguidores no Facebook e dão concertos por todo o país e lá fora, mas depois na nossa zona não temos oferta suficiente para dar vazão ao certo estatuto que já atingimos”, aponta Nucho. “Eu dei um concerto há pouco tempo em Luanda e não consigo dar um onde cresci [Miratejo]”, exemplifica. Don Nuno reforça: “De vez em quando há concertos nas festas das zonas mas vão buscar pessoas de fora da Margem Sul.”

“Continuar a trabalhar”

Para António Pimentel, director do MNAA, era “óbvio” que tinha de se aliar a esta proposta lançada pela Hit Rádio. “É mesmo o género de coisa de que gosto. Porque gosto de quebrar as barreiras no sentido em que este museu pertence a todos e é um espaço onde todos se devem projectar”, justifica. “E este grupo, que chega a muitas pessoas, pode levar o museu a outros, pode passar a palavra”, acrescenta.

Uma iniciativa, considera o responsável, que vem no seguimento do ComingOut, programa que em 2015 levou às ruas do Chiado, do Príncipe Real e do Bairro Alto reproduções de obras da colecção do museu. E a partir da qual se estabeleceu uma ligação inesperada com a Margem Sul. “Houve o ‘roubo’ de algumas reproduções. Nesta apropriação das obras houve quatro que foram levadas para a Margem Sul, para o Laranjeiro, por rapazes de lá. Também as queriam ter lá para a comunidade, e com razão”, conta o director do MNAA. Uma chamada de atenção com significado político, reconhece António Pimentel.

Para evitar que este tipo de iniciativas pontuais fiquem pelo fogo-de-artifício e pelo impacto a curto prazo, é preciso haver uma acção regular e sistemática no trabalho com públicos mais diversos de modo a operar uma mudança estrutural no acesso ao consumo (e à produção) da cultura, em particular nas artes plásticas, ainda enformadas por um certo elitismo. O responsável da Hit Rádio concorda que é preciso “mais regularidade”, mas considera que “se deve ter também em conta os resultados” destes projectos. “Se conseguirmos chamar a atenção há mais vontade e abertura para fazer mais coisas, inclusive fora do centro de Lisboa.” Para António Pimentel, é necessário uma acção “entrecruzada” entre várias instituições, a começar “desde logo pela educação”.

Malabá já leva convites para voltar ao MNAA e trazer a família. “Vou informar-me antes sobre algumas coisas para dar umas dicas ao puto”, diz. Quanto à música, é “continuar a trabalhar”. “Nosso rap não metem no fundo do rio”, avisa Malabá em Como Tenho Feito. Aconteça o que acontecer, eles dão luta.

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