Dilma: pobres e velhos do Brasil ficaram "sem passaporte para o futuro"

Dilma Rousseff está em Lisboa para uma conferência sobre "Neoliberalismo, desigualdade, democracia sob ataque". Numa conversa com jornalistas, denunciou mais uma vez a existência de um "golpe parlamentar" no Brasil e elogiou o acordo em Portugal como "uma referência e um exemplo".

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A ex-Presidente do Brasil vai estar quarta-feira numa conferência no Teatro da Trindade Enric Vives-Rubio

Duas ou três piadas não chegaram para Dilma Rousseff disfarçar a irritação que trouxe do Brasil gravada no olhar, mas também ninguém estava ali à espera de um espectáculo de comédia. Esta terça-feira, um dia antes de abrir o Ciclo de Conferências do Teatro da Trindade, em Lisboa, a ex-Presidente brasileira passou pela Fundação José Saramago para uma conversa com jornalistas que mais pareceu uma aula de anatomia com a dissecação de um "golpe parlamentar".

Dilma Rousseff veio a Portugal para falar sobre "Neoliberalismo, desigualdade, democracia sob ataque", e se a conferência de imprensa desta terça-feira for um cheirinho do que se puder ouvir quarta-feira, a Presidente destituída vai apresentar uma parte da sua autobiografia política, pelo menos aquela que tem preenchido os dois últimos anos.

Não houve muitas perguntas por falta de tempo e o discurso de Dilma levantou e aterrou sempre no mesmo aeroporto – aquele lugar onde foi reparando os estragos provocados por um difícil processo de destituição e onde agora se prepara para voltar à luta como senadora ou deputada federal, se for essa a vontade dos eleitores.

A aula de anatomia começou com uma longa descrição do que aconteceu no Brasil político segundo o olhar da sua mais importante protagonista nos últimos meses. Logo à primeira pergunta, sobre uma possível influência do machismo e da misoginia no seu processo de afastamento, Dilma Rousseff não perdeu tempo e foi por ali fora ponto por ponto: "Eu diria que foi um dos ingredientes, não o único ingrediente, mas certamente um dos ingredientes. O meu processo de afastamento foi um golpe parlamentar." Estava lançado aquele que seria o único tema da conferência de imprensa, se ninguém se tivesse lembrado de fazer uma pergunta sobre o acordo parlamentar em Portugal.

"Eu acredito que se um chefe de Estado fosse afastado pelo que eu fui, se afastaria a cada semana todos os chefes de Estado do mundo. Porque um crime de responsabilidade é crime de traição, suborno. Eu fui afastada porque fiz três decretos, e esses três decretos correspondiam a 0,01% do Orçamento. No máximo, poderia ser uma irregularidade administrativa, que justificaria um aviso e nada mais", disse Dilma Rousseff.

Para a ex-Presidente do Brasil, o processo que levou à sua destituição foi organizado por "sectores dos media e parte dos sectores financeiros e empresariais". E o objectivo foi "aproveitar a crise económica para construir em cima dela uma crise política" e afastá-la da Presidência, porque "eles tinham um programa de corte eminentemente neoliberal e o Brasil estava fora da corrente do neoliberalismo nas suas decisões políticas".

A agenda neoliberal e as empresas de media são os dois vilões desta história – não estava ninguém do primeiro grupo na Fundação José Saramago, mas não faltavam representantes do segundo, como a jornalista da Folha de São Paulo.

"Você acha que houve favorecimento a Aécio?", perguntou a jornalista, referindo-se ao senador Aécio Neves, do PSDB, que perdeu para Dilma Rousseff nas presidenciais de 2014. A resposta veio com fogo no olhar: "O que é que você acha, minha filha? Eu acho que vocês têm responsabilidade em relação aos favorecimentos no Brasil, respondam vocês."

"Discutir os media no Brasil está interditado", criticou a ex-Presidente, depois de defender uma reforma no sector: "Os media no Brasil sempre confundiram a regulação económica deles com o controlo da imprensa. Não se trata de controlo de conteúdo. Que falem o que quiserem, que façam os artigos que quiserem, mas que haja liberdade de várias posições aparecerem para o conjunto da sociedade brasileira. Não vamos deixar que liberdade de imprensa seja confundida com controlo oligopolista da informação, informação única, pensamento único, única verdade."

As críticas aos media foram muitas e muito duras – para Dilma, as empresas de jornalismo no Brasil estão entre as grandes culpadas, lá em cima com o sistema político. "Eu falo porque já não tenho a menor ilusão a respeito do sistema político e dos media. São obstáculos à ampliação da democracia no meu país."

Mas Dilma diz também que o "golpe parlamentar" não acabou com a sua destituição. Depois disso veio aquilo que considera ser um "crime contra direitos sociais e económicos dos brasileiros, sob a aparência de uma política fiscal austera". Depois da aprovação de uma emenda à Constituição que congela por 20 anos os gastos com despesas em educação, saúde e segurança, entre outras despesas primárias, a ex-Presidente acusa o actual Governo de "tirar uma parte do passaporte para o futuro dos pobres e dos velhos do Brasil". O Governo de Michel Temer diz que foi preciso impor um tecto ao crescimento dos gastos do Governo federal, com o objectivo de reequilibrar as contas.

Quanto ao futuro, Dilma Rousseff admite candidatar-se a senadora ou deputada federal, mas afasta para já dois cenários – fazer parte de um possível Governo de Lula da Silva em 2018, porque "não gostaria" devido à idade, e candidatar-se ela própria à Presidência. Porquê? "Porque Lula da Silva tem 38% de aprovação e eu não. É por isso."

No pequeno passo que deu fora do caminho da política brasileira, Dilma Rousseff elogiou o acordo parlamentar em Portugal, considerando que é "uma referência e um exemplo". "Acho que Portugal, de uma forma clara, mostra um caminho, que é uma coligação progressista e com uma proposta."

Depois da passagem desta terça-feira pela Fundação José Saramago, Dilma Rousseff vai estar quarta-feira no Teatro da Trindade, em Lisboa, a partir das 18h30, para uma conferência sobre o tema "Neoliberalismo, desigualdade, democracia sob ataque", mas os bilhetes já estão esgotados.

 

 

 

 

 

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