O terror do Daesh também se alimenta de Hollywood e dos videojogos

Terror Studios mistura Seven , Call of Duty, execuções e propaganda. Documentário do Odisseia tenta saber “quem é a Leni Riefenstahl do Daesh".

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Uma das imagens de propaganda coladas à cena final de Sete Pecados Mortais, de David Fincher dr
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Cena final de Sete Pecados Mortais, de David Fincher dr
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O realizador Alexis Marant dr
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FIlme de propaganda dr
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Filme de propaganda com crianças dr
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Em Terror Studios, os que falaram perante as câmaras fizeram-no com a identidade ocultada dr
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Em Terror Studios, os que falaram perante as câmaras fizeram-no com a identidade ocultada dr
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Em Terror Studios, os que falaram perante as câmaras fizeram-no com a identidade ocultada dr

Quando os primeiros vídeos de propaganda mais sofisticada do Daesh começaram a ser divulgados, no Verão de 2014, os olhares dos jornalistas, analistas e realizadores que se obrigavam a vê-los encontravam uma familiaridade perturbadora. Havia quem pensasse na CNN e nos seus gráficos quando via os “noticiários” que o Daesh usava para passar a sua versão dos acontecimentos, ou nos filmes Jogos da Fome e em videojogos como Call of Duty quando confrontado com a estética dos vídeos de execuções, decapitações e ameaças. Alexis Marant sentiu o mesmo. E quis saber “quem é a Leni Riefenstahl do Daesh, quem é o cérebro por trás disso”.

Transmitido esta segunda-feira, às 22h, o documentário Terror Studios, de Alexis Marant, inaugura uma semana de programas sobre o fenómeno do terrorismo no canal Odisseia. O realizador, que encontrou no Canal+ um parceiro de produção que lhe permitiu dedicar cerca de dois anos à feitura de Terror Studios, assina um documentário que resume a complexa relação do Daesh com o Ocidente numa premissa: o Daesh recruta os jovens do Ocidente (e não só) usando as armas audiovisuais do Ocidente. A propaganda do terrorismo é inspirada por Hollywood e fruto da glorificação da violência que alimenta a cultura popular ocidental nas últimas décadas.

E não falamos só de como o Daesh usa excertos do filme Reino dos Céus, de Ridley Scott, colados a imagens de jihadistas das suas fileiras, nem de imagens do videojogo Assassin’s Creed (que está prestes a estrear-se também no cinema com Michael Fassbender como protagonista), nem dos pedaços de Estado de Guerra, o filme de Kathryn Bigelow sobre o Iraque. Falamos de imagens coladas à cena final de Sete Pecados Mortais, de David Fincher. Não se trata apenas de usar o laranja dos fatos-macaco dos prisioneiros de Guantánamo para vestir os reféns do Daesh, são as composições de planos e a forma como se colocam as vítimas dos jihadistas como se fossem os concorrentes do reality show Survivor. É a pilhagem da cultura visual do Ocidente para alimentar “a mais poderosa máquina de propaganda desde os nazis e a Guerra Fria”, como postula Terror Studios.

Os valores de produção são elevados, a montagem é de filme de acção, a técnica ao melhor estilo blockbuster e o Al Hayat Media Center, o centro nevrálgico do departamento de comunicação do Daesh, “é como entrar num grande estúdio de produção internacional”. É assim que Terror Studios vem confirmar e acrescentar novas vozes ao que desde 2014 se estuda e sabe sobre a máquina de acelerar radicalizações que é esse estúdio, miticamente dirigido por “um americano branco que trabalhou em Hollywood e que trouxe uma equipa” para o Al Hayat – Abu Abde(l)rahman Al Amrik. Os testemunhos que servem de base ao documentário são fruto de muitos contactos e da perícia no terreno de jornalistas veteranos como Wassim Nasr (France24) e juntam actuais membros do Daesh e desertores como um ex-câmara sírio, por exemplo.

“Os meus informadores, sobretudo árabes (sírios, iraquianos, jordanos, sauditas) porque sobretudo desde os ataques ao Charlie Hebdo tornou-se mais difícil de comunicar com ocidentais do Daesh, estavam a comunicar pelas redes sociais e por sistemas de mensagens encriptadas — e aqueles que conseguimos pôr perante uma câmara eram todos desertores”, frisa Marant ao telefone com o PÚBLICO.

O realizador francês comenta que “nem vemos a violência nos blockbusters porque estamos tão habituados a ela” que as mortes às pazadas não têm qualquer tipo de efeito. Alguns vídeos do Daesh, por seu turno, têm um efeito perturbador não só pelo seu fim, mas também pela distância que parecem criar no espectador, que sabe que está a ver um filme de propaganda terrorista mas sente que está a ver um filme – sofre do efeito performativo de dormência mental que produzem os mesmos códigos da ficção televisiva ou cinematográfica num produto perigosa e violentamente realista. E depois, há o perigo de que quem fala sobre a potente estratégia de comunicação do Daesh está no fundo a propagandear os méritos do Daesh. “Isso é completamente verdade. Estes tipos estavam orgulhosos do impacto do seu trabalho junto do público, quer no Médio Oriente ou no Ocidente”, admite Alexis Marant.

Aqueles que falaram perante as câmaras (com a identidade ocultada) fizeram-no “porque já não concordavam com a estratégia e ideologia do Daesh, o que não significa que tenham deixado de apoiar a jihad. Não aceitam a ideia do califado ou o uso de tanta violência sobre outros muçulmanos, como os sunitas”, acrescenta o realizador, que desde o princípio sabia que outra fronteira que tinha de marcar era a do que mostraria em Terror Studios – e vemos cenas tão desconcertantes como um refém, um piloto jordano que acabaria queimado vivo, a ensaiar e a ser dirigido como um actor no cenário que seria o do filme da sua morte – e de como filmaria. Não só não são visíveis cenas de violência real e directa (uma execução) e apenas a sua encenação e antecâmara, como são sim mostradas, no seu exagero orgiástico, cenas como as da Torre Eiffel em queda no filme G.I. Joe, mas usadas numa colagem pelo Daesh. E Marant sabia também que “tínhamos de fazer uma proposta diferente da cinematografia do Daesh. As nossas imagens tinham de parecer e ser diferentes do que mostraríamos do Daesh. Por isso escolhemos movimentos longos e em câmara lenta, enquanto que o Daesh usa uma montagem de videoclip, muito rápida, muitas imagens e acelerações, muitas câmaras. No que toca à cor, o Daesh satura as cores e nós escolhemos ter imagens low profile e com cores esbatidas”, exemplifica.

“Criámos esse monstro”

Entre o Verão e o Outono de 2014, Alexis Marant ia anotando o que distinguia aqueles vídeos que surgiam online. Cada vez mais sofisticados em termos de realização, usavam “várias câmaras, gruas e steadycams. Havia muito trabalho de pós-produção e efeitos especiais, design de som”. E “era notável como usavam os códigos dos filmes, das séries, dos videojogos e até usavam alguns excertos de grandes filmes nos seus próprios vídeos”, recorda Marant. Deu “um passo atrás em relação ao horror” e começou o trabalho. Rodeou-se de uma equipa de jornalistas e pesquisadores com contactos no Médio Oriente com um objectivo muito específico – “encontrar desertores do Daesh que tivessem trabalhado no seu braço de média”.

O tal que, dizem, era dirigido por um americano, o tal que “conhece o seu público” e usa os vídeos de execuções não só como uma forma de criar medo, como fazia a Al-Qaeda antes de si, mas sobretudo para passar a sua mensagem e, em consequência, recrutar novos membros, como dizia Bruce Hoffman, perito em terrorismo do Woodrow Wilson International Center for Scholars, em 2015 ao Los Angeles Times. Esse público são pessoas que “cresceram numa cultura de filmes violentos e videojogos e se excitam com eles… Têm como alvo aqueles que vêem na violência uma forma de catarse e uma forma de contra-atacar contra o inimigo”. Em pleno Verão de 2014, um combatente do Daesh confirmava à BBC como as suas expectativas tinham sido plenamente correspondidas — agora, como jihadista, a sua vida era “melhor do que o jogo Call of Duty”.

Há uma contradição inerente entre o projecto do domínio pelo Califado e correspondente rejeição da cultura ocidental e o aproveitamento dos mecanismos dessa mesma cultura. Ela não escapa ao realizador e aos analistas que se têm debruçado sobre o fenómeno — a chave parece ser a glorificação da violência como traço comum entre o Daesh e Hollywood e outros produtos da cultura audiovisual de massas actual. “O motivo pelo qual fazem tantos vídeos de decapitações e execuções, tentando inventar novas formas de matar pessoas, é para perpetuar o nosso próprio fascínio com a violência e para garantir que estes vídeos são vistos.” 

Para Marant, que perfilha a narrativa de que jogos, filmes e televisão estão cada vez mais violentos, “há decididamente uma responsabilidade na forma como a nossa cultura pop se orientou rumo à violência nos últimos 20 ou 30 anos”. Cita colegas de trabalho que não quiseram ser citados em Terror Studios (que entrevista ensaístas, jornalistas e profissionais de cinema) que diziam “criámos esse monstro”. Volta também a uma tese duradoura, a de que Quentin Tarantino “tornou a violência trendy, algo com classe, algo recreativo, algo completamente desligado do horror — é só o deleite da violência. É a expressão mais extrema da forma como a violência é usada em demasia na cultura pop e [como] criou até uma espécie de vício”.

O sentido inverso também é verdadeiro – de Segurança Nacional a House of Cards, do iminente War Machine de Brad Pitt a 13 Horas: Os Soldados Secretos de Benghazi, o Daesh, a Al-Qaeda, a guerra, o terrorismo vendem bem em Hollywood e vizinhança. E o próprio Daesh está a mudar, sempre, tal como no terreno há avanços e recuos. Os alvos mudam, a retórica também. Há, por exemplo, cada vez mais crianças nos vídeos — desde crianças yazidi aculturadas e convencidas a matar a crianças em novos papéis. “Agora que estão a perder terreno talvez consigamos ver, por falta de meios, coisas que antes não permitiriam — o uso de crianças, como digo no filme, vê-se cada vez mais. No início víamo-los apenas a treinar ou a ler o Corão e não a matar pessoas e há semanas lançaram um novo vídeo com crianças muito pequenas a decapitar uma pessoa e outros a jogar aos disparos contra reféns. É uma nova tendência, têm de criar novidade para trazer interesse e querem passar esta mensagem de que se perderem desta vez há uma nova geração emergente que nos ferirá”.

A mensagem continua a mesma, os limites também (o sexo, as mulheres), e os alvos é que se vão refinando. Nos últimos meses “vêem-se menos filmes mas os que surgiram entretanto ainda têm uma qualidade bastante elevada”, o que aconteceu foi uma adaptação da mensagem. “Parecem visar mais os curdos e fazem filmes a ameaçar a Rússia, um grande actor no terreno no último ano, ou a ameaçar a Turquia porque o governo turco finalmente, depois de tantos anos de ambivalência, se voltou contra o Daesh devido à pressão internacional”. 

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