O romance do homem dos sete ofícios

João Reis é um dos poucos tradutores portugueses de línguas nórdicas, tendo traduzido, entre outros, Knut Hamsun e Halldór Laxness. Foi editor e deu a conhecer grandes autores. Até agora tinha escrito uma novela. Acaba de publicar o seu primeiro romance, A Avó e a Neve Russa.

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Um dos pouquíssimos tradutores portugueses que verte livros do sueco, do norueguês, do dinamarquês, e do islandês publica o seu primeiro romance FOTO: ENRIC VIVES-RUBIO

Estudou Filosofia, aprendeu línguas nórdicas, fundou a editora Eucleia (da qual foi um dos dois responsáveis entre 2010 e 2012), trabalhou em cozinhas na Noruega e na Suécia, e ainda num armazém de vinhos em Inglaterra, e é um dos pouquíssimos tradutores portugueses que verte livros do sueco, do norueguês, do dinamarquês, e do islandês. Escreveu a novela A Noiva do Tradutor (Companhia das Ilhas, 2015), e acaba de publicar o seu primeiro romance na editora Elsinore (que assim se estreia com autores portugueses), A Avó e a Neve Russa. João Reis (n. 1985) contou ao Ípsilon que a ideia do livro lhe surgiu numa residência literária de dois meses que fez em Montreal, no Canadá.

Como editor publicou autores até então inéditos em Portugal, nomes importantes na literatura europeia como (referindo apenas escritores nórdicos, mas houve outros): Erling Jepsen, Hjalmar Bergman, Alexander Kielland, ou Kjersti Annesdatter Skomsvold. Como tradutor a lista é bastante mais extensa e inclui os nomes de Knut Hamsun, Halldór Laxness, August Strindberg, entre muitos outros, não deixando de fora os policiais nórdicos. O interesse pelas línguas nórdicas começou por um acaso ainda na universidade (já se interessava bastante pela música e pelo cinema que lhe chegava do frio): inscreveu-se num curso de sueco e gostou. “Era bom aluno, e fui continuando. Comecei também com o norueguês. Mas cheguei a uma altura em que já não havia cursos para o meu nível. Então tive que procurar professores particulares nativos e continuei a estudar. Foi isso que aconteceu também quando decidi aprender islandês, que foi talvez um pouco mais complicado. Agora estou a aprender alemão, e é mais difícil que estas outras línguas”, confessou.

Quando se lê A Avó e a Neve Russa, quase se adivinha, em algumas passagens, o à vontade que João Reis tem com a literatura do norte da Europa: há um humor sarcástico e subtil que se vê pouco na literatura lusa. Como neste excerto: “Vendo bem, a Babushka tem medo de muitas coisas. Não sei se terá sido dos nevoeiros atómicos ou dos medos que existiam na velha Ucrânia. A Babushka diz que, naqueles tempos, os russos antigos-soviéticos levavam as pessoas para uns campos bem longe, na Sibéria, a que chamavam gulasch, e onde as pessoas passavam fome e muito frio. As pessoas, muitas vezes, nunca mais apareciam, ou regressavam sem dedos ou sem mãos ou sem pés. O frio queimava-os – ou tinham tanta fome, que se comiam aos bocados para não morrer com tuberculose ou pneumonia. A minha avó nunca foi para um desses campos, mas viveu durante anos com medo de ser levada a meio da noite, já que o meu avô Anatoli tivera, em novo, visões políticas que eram diferentes.”

O romance é narrado por uma criança de dez anos de idade, que com uma voz muito característica nos vai contando a história, a dele, a da sua avó, de alguns membros da família, e de mais umas quantas personagens bizarras que se lhe atravessam no caminho. Uma das coisas mais interessantes neste livro (porque difícil), é o modo como João Reis consegue (melhor palavra seria escrever ‘aguenta’) manter o tom de voz do narrador, entre o infantil e o irónico com muitos laivos sarcásticos, mas que deixa o leitor sempre dentro de um discurso de verosimilhança, pois seria possível que uma criança falasse assim, com tudo disfarçado de ‘inocência’. O próprio autor (que confessa gostar de romances narrados por vozes de crianças ou de jovens) diz que “se esta história fosse contada por um adulto não teria o mesmo efeito, a mesma piada”. E não teria, seria um outro livro, bastante mais inócuo e infantil. “Tentei criar um narrador que, embora inteligente para a sua idade e curioso, absorvesse as ideias dos adultos em seu redor, assim como as leituras mais sérias que faz, mastigando-as e dando-lhes a sua própria forma, usando-as por vezes sem alcançar o seu significado total”, diz João Reis. “Desta maneira, ele recorre a detalhes de diversas religiões e ainda de diferentes campos e cores políticos, a dicotomia capitalismo / comunismo, por exemplo, como uma boa criança, para seu uso pessoal. Nesta medida, o narrador quase acredita em qualquer religião, desde que estas lhe possam salvar a avó. Da mesma forma, como ouve histórias da família que fugiu dos soviéticos e acerca dos efeitos nefastos do suposto comunismo, a «Antiga Soviética» e o comunismo são diabolizados, estando por outro lado o pretenso capitalismo norte-americano, que ajudou a sua família e as outras dos imigrantes com quem convive. Mas alguns dos seus amigos vivem na rua e opõem-se ao «capitalismo», o que cria uma certa confusão à criança-narrador”.

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FOTO: ENRIC VIVES-RUBIO

A história de A Avó e a Neve Russa, é, de certa maneira, uma narrativa de crescimento e de procura. O rapaz, depois de nos contar parte do seu passado, e da família, parte numa procura quase desesperada por uma planta (ouviu dizer que existe no México) que cure, ou que pelo menos alivie, a sua avó (Babushka) dos padecimentos de que sofre, segundo ele causados pela explosão de Chernobyl, uma vez que ela vivia nos arredores (antes de ter emigrado para o Canadá). “Eu tenho 10 anos há pouco tempo e nasci aqui, em Montreal, mas a minha família vem de muito longe, do continente da Europa. A Babushka nasceu perto de Moscovo e é russa de nascimento, porque Moscovo fica na Rússia (embora tenha também sido parte da Antiga-Soviética, esse país já acabou), e o meu irmão nasceu em Pripyat, na Ucrânia, onde a minha família morava na altura do acidente de Chernobyl. O meu avô Anatoli era aí engenheiro [morreu três semanas depois do acidente]. (…) Quando abriram a central dos ares atómicos em Chernobyl, os meus avós e mãe foram para Pripyat. Na altura, a Ucrânia também era Antiga-Soviética, eram todos países amigos e o meu avô pôde ir para lá trabalhar.”

Há no narrador deste singular romance uma tentativa de manter uma certa lógica, nem que para isso seja preciso inventá-la: as ideias parecem nascer de uma amálgama de leituras, de histórias dos amigos da avó, de coisas ouvidas na rua a pessoas mais ou menos bizarras. Face ao crescimento, e a alguma dificuldade em lidar com o mesmo, o narrador escolhe sempre por manter uma perspectiva infantil. Servindo-se deste olhar, João Reis consegue um efeito poético na escrita – que é sempre bastante segura e sem quebras de ritmo, note-se – que de outra forma dificilmente teria num outro registo. “As folhas caídas das árvores giram à minha volta com o vento, mas aperto mais o casaco, porque nem o vento nem as folhas-bailarinas me alegram com a melancolia, só me deixam ensopado em tristeza, como a chuva nos faz por vezes. Os homens não choram. Avanço. Os cactos que vejo alinhados na rua voltam a ser árvores e a Babushka, deitada na cama de hospital, é uma criança que aumentou e encolheu.”

O livro foi escrito durante uma estada do autor no Canadá, e isso foi influente no facto de situar a história em Montreal, confessou o próprio. “Havia ali a questão da emigração, que era muito evidente em Montreal, havia o multiculturalismo. Aquela personagem passa por tudo isto, filho de emigrantes russos, mas já nascido em Montreal. E depois havia também a questão do multilinguísmo, ali no Quebec. O miúdo fala francês e inglês, e por vezes, porque a cabeça da avó já não funciona bem, tem de falar com ela apenas em russo. O ambiente influenciou o livro. Se a residência literária tivesse sido noutro país, o livro seria outro”.

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