Mais uma vez: o ascenso do "trumpismo" nacional

É um problema para a direita, que detesta o seu lado revolucionário e anticonservador, mas que o aceita muito mais do que o pode admitir.

Falar de Donald Trump é a coisa mais importante sobre a qual se pode falar nestes dias. Tudo o resto parece menor e é efectivamente menor, e sinto-me quase escapista se falar de política doméstica face ao que está a acontecer ao mundo. Problemas na “geringonça”? Certamente que há, mas valem pouco. As desventuras de Passos Coelho no PSD? Sem dúvida que as há, mas também há muita imaginação criadora sobre o seu isolamento no PSD, pelo menos no aparelho do PSD. Os “afectos” do senhor Presidente? Esses enchem o mundo e são muito inócuos. As peripécias da banca? Sem dúvida que são importantes, irão ao nosso bolso, mas temos tempo para voltar a elas. A confusão do "Brexit"? Bom, aqui começamos a tocar em coisas mais importantes. A perplexidade europeia face ao ascenso de gente como a senhora Le Pen? Bom, aqui começamos a ter de falar muito a sério. O crescente caos no mundo, entre uma Rússia ascendente, um Irão enervado, uma China a preparar uma variante qualquer da “tortura chinesa” para os americanos? Sim, aqui já não é só preocupações, começamos a sentir o perigo. Perigo mundial, como há muito tempo não se via. E aqui já estamos claramente no domínio de Trump e dos efeitos da sua revolução. É por isso que falar de Trump é a coisa mais importante sobre a qual se pode falar nestes dias.

E como falamos para Portugal, quando muito com efeitos caseiros, é de Trump em Portugal que tem interesse falar. Isto, porque Trump é a mais grave consequência de muitos anos de desleixo político em nome de uma certa “economia” política, da crise da social-democracia, que se impôs depois de 2008, e que pode ter efeitos muito perigosos, mas pode também ter efeitos benéficos. Trump polariza, a seu favor e contra, e esse efeito polarizador maximizará os seus apoiantes, mas também fará sair de uma longa letargia os seus adversários. Trump teve a vantagem de não permitir qualquer benefício da dúvida e de ser tão claro no sentido da sua intervenção, que provocou uma imediata reacção negativa, que, um pouco por todo o lado, tem vindo em crescendo. Esse fenómeno é global e não permite muitas hesitações. Theresa May viu isso, quando as suas ambiguidades na visita que fez a Trump a obrigaram a ter de usar no Parlamento britânico uma linguagem condenatória que tinha evitado usar nos EUA. A conversa irritada que teve o primeiro-ministro australiano com Trump e o cancelamento da visita do Presidente do México mostram que a paciência com Trump não existe em quase lado nenhum. Se é assim em cima, é muito mais em baixo.

Será que são “radicais”, como acusa a direita portuguesa aos que não dão qualquer benefício de dúvida a Trump? Na linguagem simplista que, quer queiramos quer não, faz algum sentido na política redutora dos nossos dias, Trump é de esquerda ou de direita? A resposta é muito clara: Trump é de direita, de uma direita agressiva e pouco democrática, proteccionista e pouco liberal, que da política quer a opinião das massas, mas não quer os procedimentos da democracia e o primado da lei, ou seja, usa a demagogia, a irmã perversa da democracia, para um caminho perigosamente autoritário. Vejamos o seu programa: proteccionismo e nacionalismo económico, desregulação, fim de toda a legislação gerada depois da crise de 2008 para travar os excessos financeiros da banca, baixa dos impostos sobre os negócios, fim de qualquer regulamentação que limite a actividade das empresas e de Wall Street, fim de mecanismos de almofada contra a pobreza como era o Obamacare, etc., etc. Ou seja, um programa que, com excepção do proteccionismo e nacionalismo económico, é da direita, incluindo a direita liberal. Há uma divergência com uma direita que se tornou internacionalista e partidária do livre comércio, da procura de salários baixos com a deslocalização das empresas, e a quem não agrada o “rasgar” dos tratados de comércio, mas para eles Trump reserva o seu comportamento de bullying, que até agora parece ter dado alguns resultados.

Depois há as questões de costumes, os direitos das mulheres, dos homossexuais, o aborto e o planeamento familiar, o papel crescente das Igrejas evangélicas na vida política, um grupo de questões que são típicas da agenda da direita. E, por fim, um dos aspectos mais importantes, está o estilo autoritário de permanente ameaça, vingança ou retaliação, no limiar da legalidade e dos procedimentos aceitáveis em democracia. Estranhamente, não vejo muitos protestos contra factos que roçam a ilegalidade, como seja o convite para se “irem embora” aos mil funcionários do Departamento de Estado que assinaram um documento de divergência da política de Trump usando um mecanismo previsto pela própria lei interna, isto é, usando um direito garantido até hoje pelo departamento de que são funcionários.

De facto, se retirarmos o seu proteccionismo e o consequente isolacionismo americano, que explica a sua aproximação a Putin, que aplaude com todas as mãos; as suas reservas quanto à NATO, que Putin também aplaude com os pés e com as mãos, a política de Trump segue um padrão típico da direita em matérias de política interna. O que sobra do intervencionismo americano é errático e incoerente: o combate total ao ISIS, não se sabe como, mas certamente com os russos, após a legitimação do governo de Assad, a aproximação aos ultras israelitas, a belicosidade com o Irão e a China, que também não afectam o quadro geral dos interesses russos, e afastamento dos seus aliados tradicionais na Europa e na Ásia. Se exceptuarmos a aproximação à Rússia, o resto é muito pouco coerente, mas traduz o desinteresse que Trump tem pela política internacional.

Neste contexto, Trump é um problema para a direita, que detesta o seu lado revolucionário e anticonservador, mas que o aceita muito mais do que o pode admitir. Aliás, é interessante verificar que, quase sem excepção, os artigos escritos à direita em Portugal sobre Trump têm como motivação muito mais a crítica aos críticos de Trump do que a crítica a Trump. Embora não possa garantir ter lido todos, ainda estou para ver um artigo, comentário, declaração vindo da direita portuguesa que seja apenas… contra Trump. E não faltam motivos. O que há é ataques aos que atacam Trump, e depois desgosto com a personagem, mas a economia da indignação vai para os “radicais” que o atacam, muitas vezes colocados no mesmo plano. Outra variante é dizer que Trump está a fazer o mesmo que fez Obama ou Clinton, só que gabando-se, em vez de esconder a mão, como eles fizeram. Na aparência pode ser verdadeiro, como é o caso do muro com o México que já existia, mas toda a gente sabe que, no domínio simbólico da política, o muro de Trump, “pago” pelos mexicanos como sinal da sua culpa colectiva, é uma coisa completamente diferente do de Obama. Do mesmo modo, há uma diferença abissal entre “banir” a entrada de imigrantes ilegais, e ter todo o cuidado com a imigração de zonas de conflito, e “banir” as entradas de países muçulmanos porque são muçulmanos. E mesmo assim “banir” só os países muçulmanos onde Trump não tem negócios, e não aqueles como a Arábia Saudita que efectivamente exportaram mais terroristas para os EUA e para todo o Médio Oriente.

Trump chegou à presidência americana num período de geral radicalização da direita e de destruição do centro. Trump e a direita portuguesa partilham os inimigos. Ora, na lógica dos mecanismos redutores da política dos dias de hoje, essa direita vai-se encostar cada vez mais a ele, tanto mais quanto Trump pareça ir perder, porque os seus adversários são os seus, e os inimigos dos meus inimigos meus amigos são. A comunidade de adversários é, em tempos de crise, um poderoso factor de aproximação. Será muito pouco bonito de ser ver, mas vai-se ver, ou melhor, já se está a ver.

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