Os monstros de Trump

O novo Presidente parece empenhado em estruturar uma nova estratégia internacional a partir da definição dos seus inimigos externos — o “Estado Islâmico”, o Irão e a China.

A tradição populista jacksoniana, em que se filia a eleição presidencial de Donald Trump, é suposto seguir o cânone realista — na formulação clássica de Tucidides, a honra, os interesses e o medo determinam as relações entre os Estados.

Essa linha, guerreira mas avessa às intervenções externas, rejeita o consenso internacionalista-liberal dominante nas elites norte-americanas desde o fim da II Guerra Mundial, quando os Estados Unidos assumiram as suas responsabilidades internacionais. Contra a doutrina Truman, que marcou a viragem na política externa americana há 70 anos, Trump devia recuperar a máxima de John Quincy Adams: “America goes not abroad in search of monsters.” Porém, o novo Presidente parece empenhado em estruturar uma nova estratégia internacional a partir da definição dos seus inimigos externos — o “Estado Islâmico”, o Irão e a China.

Os sinais são claros. Contra Obama, Trump considera o “Estado Islâmico” uma ameaça à segurança nacional que justifica uma intervenção militar robusta dos Estados Unidos para neutralizar as suas posições na Síria e no Iraque, assim como o rapprochement com a Rússia, aliado natural no combate ao “radicalismo islâmico”. Contra Obama, Trump não quer aceitar o acordo nuclear que os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança e a Alemanha concluíram com o Irão, uma ameaça à segurança de Israel e à estabilidade regional do Médio Oriente. Contra Obama, Trump reconhece a crescente força económica e militar da China e está preparado para rever os princípios em que assentam as relações entre Washington e Pequim, nomeadamente o reconhecimento de que existe uma só China, da qual Taiwan faz parte. Num gesto inédito, o Presidente-eleito recebeu uma chamada telefónica da Presidente de Taiwan e o seu futuro secretário de Estado considerou as instalações militares chinesas nos recifes dos mares do Sul da China uma iniciativa inaceitável, “similar à anexação da Crimeia”.

Não é a primeira vez que um novo Presidente se demarca das políticas do seu antecessor: Obama fez isso mesmo quando se empenhou em retirar as tropas combatentes que Bush tinha enviado para o Iraque. Mas não é fácil fazer mudanças radicais na política externa: Trump não é Truman.

Na lista de Trump há um inimigo a mais ou inimigo a menos. Para a sua estratégia ser congruente, os Estados Unidos não podem estar ao lado da Rússia e contra o Irão no Médio Oriente: a diplomacia russa é um dos autores principais do acordo nuclear que os seus signatários consideraram um sucesso histórico e Teerão é o aliado indispensável de Moscovo na Síria, onde ambos garantem a sobrevivência do regime alawita. Não é evidente que os Estados Unidos consigam estar dos dois lados do conflito regional — com os xiitas para destruir o “Estado Islâmico” e com os sunitas para neutralizar a ameaça iraniana. Alternativamente, Washington pode recuperar a sua autonomia estratégica para impedir a vitória de Moscovo e dos seus aliados na Síria e travar a ascensão regional do Irão. Mas, nesse caso, deixa de contar com a neutralidade da Rússia, necessária para os Estados Unidos se concentrarem numa estratégia de contenção da China.

Trump também quer criar um novo tipo de relações entre os Estados Unidos e as principais potências, incluindo a Rússia e a China, seguindo um modelo realista das relações internacionais, alternativo ao modelo liberal que definiu o sistema multilateral no período da hegemonia norte-americana.

Mais uma vez, os sinais são claros. Trump está preparado para pôr em causa os acordos multilaterais que regulam o comércio internacional e para desvalorizar os dois pilares da comunidade transatlântica — a NATO, obsoleta, como todos sabem, e a União Europeia, um instrumento da dominação alemã, como todos sabem.

Porém, é difícil querer reconstituir a ordem internacional como um concerto multipolar e, ao mesmo tempo, hostilizar a China. Como todos sabem, o que define o concerto das grandes potências é a sua natureza inclusiva: Trump não é Metternich.

Trump tem ainda um último obstáculo: a polarização interna da politica norte-americana e a divisão profunda das elites, incluindo as clivagens sobre política externa entre os republicanos que separam os conservadores jacksonianos, como John McCain, dos nacionalistas reaccionários, como Trump. No mesmo sentido, na opinião pública norte-americana não há o consenso necessário para sustentar a convergência com a Rússia e uma estratégia de contenção da China. Não é fácil fazer amigos dos inimigos: Trump não é Nixon.

Mas Trump vai poder procurar os seus monstros na Casa Branca. Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-Universidade Nova)

 

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