No Recôncavo de Caetano Veloso

1. Até ao começo de 2017, o Recôncavo Baiano era um lugar imaginário para mim, espécie de mito de origem do meu orixá Caetano Veloso. Caetano nasceu numa cidadezinha do Recôncavo, Santo Amaro da Purificação, de onde um dia saiu para acompanhar ao Rio de Janeiro a sua irmã mais nova, Maria Bethânia, e onde a casa da mãe de ambos, Dona Canô, continua o epicentro de toda a festa. Sempre que o Recôncavo me aparecia em alguma história, eu ouvia Caetano cantando aquelas palavras misteriosas, “E o Recôncavo / e o Recôncavo / e o Recôncavo / meu medo”, e o Recôncavo crescia na imaginação. Como seria esse Recôncavo? Nunca me ocorreu ir ao mapa ver que forma tinha, como se isso fosse impossível, porque não se veria. Até que no primeiro sábado de 2017 saí de Salvador a caminho do Recôncavo, desse chão da natividade de Caetano que seria Santo Amaro. Eu e um carro de baianos tentando convencer-me que Santo Amaro que nada, que linda no Recôncavo era a cidade de Cachoeira, que quando eu visse Cachoeira esqueceria Santo Amaro e até o meu orixá, de quem por esses dias, aliás, se dizia, sim, estar na Bahia.

2. O Recôncavo Baiano é o contorno interior da Bahia de Todos os Santos, da qual Salvador constitui uma ponta. Terra muito fértil, de engenhos de cana e fazendas de fumo. Quando as últimas favelas da zona metropolitana de Salvador desaparecem, o horizonte abre-se numa paisagem de filme do oeste americano, nuvens brancas no azul, só que com palmeiras. Um carocha branco some no asfalto, plantações de bambu, depois eucalipto. E assim, tão fácil, entramos em Santo Amaro! Cidadezinha de interior, no fervilhar das compras de sábado de manhã, igrejinha pintada de azul, casas com relevos em gesso misturadas com alumínios e plásticos, uma placa indicando Casa de Dona Canô, como se fosse a Catedral ou a Prefeitura. Seguimos a placa até a achar, nº 179 da rua da igreja-matriz, portinhola de ferro forjado pela cintura, por cima aberta, branca. Ninguém do clã Veloso à vista, nem dentro nem fora. Mas, como os deuses estão comigo, calha que esta noite é a grande festa de Reis de Santo Amaro, então há que dormir em Santo Amaro. Portanto, seguimos para Cachoeira almoçar e voltaremos aqui ao poente, como nos mitos.

3. Colinas suaves, velhas roças ao fundo, novas condutas de petróleo. Um arco surge contra o céu, anunciando “Cachoeira Heróica e Monumento Nacional”. Heróica pela participação nas lutas da independência, histórica pelo património. Conta-se que terá sido fundada por Diogo Álvares Correia, célebre náufrago português do século XVI adoptado pelos indígenas sob o nome Caramuru. Praças, igrejas, casario barroco, fachadas coloridas desembocando no rio Paraguaçu. Na outra margem, a um pulo, a cidade de São Félix. Em cada margem, um cenário de postal, tudo tão devagar como o sotaque baiano, malemolência de almoço à beira-rio, na sombra dos flamboyants, comendo camarão, carne de sol (seca e salgada), farofa de dendé (azeite de palma) ou maniçoba (guisado com folha de mandioca triturada e carnes fortes). Depois, é hora da xepa no mercado, ou seja, últimas compras, mas continua aberto o “Armazém Souza — Esse você conhece e confia”. Os forasteiros fogem ao sol colando-se à sombra de velhos casarões recuperados ou ainda em ruínas, por vezes só fachada. Sendo um antigo centro da prosperidade agrícola do Recôncavo, ou seja, terra de escravos, Cachoeira é até hoje bastião do candomblé. Já não há sinais da cachoeira que terá dado nome à cidade, o que se vê na cabeceira do rio é uma barragem. E a velha estação de trem também já não funciona. Mas, se atravessarmos a ponte até São Felix, vamos achar na estrada para Maragogipe um terreiro de candomblé com um coqueiro a sair pelo telhado.

4. De volta a Santo Amaro, já se prepara a festa. Na rua da matriz, e da casa de Dona Canô, senhoras penduram panos coloridos nas janelas, cobrem mesas de de cetim azul, de toalhas bordadas, penduram balões brancos e amarelos, enfeitam janelas. Ao cair da noite, o coreto ilumina-se e em volta as árvores. A casa de Dona Canô tem algumas figuras emolduradas, incluindo Mabel, uma das irmãs de Caetano, professora, porque o tema da festa de Reis de 2017 são os professores, a educação, os livros. Dona Canô já não está viva, mas por cima da portinhola há um estandarte que sobrou da festa dos seus 100 anos: “Essa Menina sempre gostou de festa!” Vizinhos abraçam-se, instalam cadeiras cá fora. Seguimos a pé, até à pracinha onde se concentrará a procissão. Os arbustos do separador central estão podados em forma de casota de cão, de casa de passarinhos. Dobrando a esquina passamos pela Associação de Capoeira Estilo e Malícia — Mestre Ventilador. Na pracinha da concentração há um bruá de gente vestida de branco. Um dos organizadores da festa é o mais novo dos irmãos Veloso, Rodrigo, Quem tenha visto o filme de Caetano, “O Cinema Falado”, talvez se lembre daquele homem tão elegante, de branco, sambando miudinho: é Rodrigo. E aqui está, tão elegante, camisa e calça branca de linho, chapéu de malandro, abraçando com felicidade quem lhe aparece. Como não amar Santo Amaro num começo de noite assim? Como não entender que Caetano Veloso venha daqui? Botequins abertos para espetinhos com farofa, maniçoba, cervejinha, uma charanga de jovens e velhos negros vestidos de branco já soprando os sopros, batendo os tambores, e a sensação de que em toda a cidade ninguém fecha a porta, de que aqui não há aquele estado de alerta que se torna uma segunda pele no Brasil. Só falta Caetano, corações ao alto. Virá??

5. Sentado na esplanada, Rodrigo Veloso tenta consertar um enfeite de cabeça, que é uma coroinha dourada com uma pluma rosa-choque. Está a ser vendida por cinco reais, mas em algumas o fio que ata soltou-se. Sentamos-nos vários a atar os fios. Alguém pergunta por Caetano, Rodrigo diz que ele vem, sim. Alguém faz circular o rumor de que Ele será mesmo Rei Mago na procissão. E daí a pouco já é um horizonte de cabeças com coroinha dourada e pena rosa. A charanga ataca em roda, belos pandeiristas contra-atacam, Mabel Veloso, octogenária, vem ágil e animada cumprimentar amigos. A procissão apresenta-se pronta a partir, com os seus arcos enfeitados de folhas, uma morena vestida de anjo empunhando um grande livro aberto, uma professora de porta-bandeira, e três reis magos de longas vestes brilhantes, nenhum deles remotamente parecido com Caetano. Nem sinal d’Ele, enquanto os irmãos Rodrigo e Mabel avançam no cortejo, alegre como um Carnaval, incluindo o negão que nos enche de purpurina, ou as poderosas negras que fecham o cortejo, batendo bombos. Voltas e mais voltas por Santo Amaro, rua acima, rua abaixo, até que à porta de Dona Canô se avista uma enchente: só pode ser a aparição de Caetano, há que chegar perto. Sim, lá está ele, pensativo, grisalho, sem copo nem latinha na mão, cercado de irmãos brindando, e toda a gente empoleirada em volta. Agora o cortejo prossegue com ele até à matriz, onde um rapaz com uma camiseta com a cara dele estampada vai avançar entre o povo para ser carinhosamente abraçado por ele. E juntos seguirão até ao presépio vivo, que tem meninos vestidos de anjo, e um bebé de verdade ao centro, neguinho, bolachudo, tão tranquilo como só na Bahia, apesar de tudo.

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