A festa ibero-americana possível, em tempo de luto

Gisela João, Yomira John e Mariela Condo levaram ao São Luiz, na noite de domingo, um mosaico de sons e culturas com alguns pontos altos.

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Gisela João ESTELLE VALENTE
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Yomira John ESTELLE VALENTE
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Yomira John ESTELLE VALENTE
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Mariela Condo ESTELLE VALENTE
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Mariela Condo ESTELLE VALENTE
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Gisela João ESTELLE VALENTE
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As três, no final ESTELLE VALENTE

Não foi bem um espectáculo, foram três mini-espectáculos num só. E não foi uma festa, como estava programado (com um beberete antes e danças depois, a celebrar a abertura de Lisboa 2017 – Capital Ibero-Americana de Cultura), porque a morte de Mário Soares mudou tudo: foi cancelado o espectáculo de arranque, o da prevista festa, e mantido apenas o de domingo. E este começou com um minuto de silêncio, respeitado por todos, em memória do antigo Presidente.

À parte disso, os três momentos musicais, que se sucederam em sequência sem se interligarem, mostraram três cantoras num espaço algo desequilibrado. Valeu como iniciativa a assinalar um evento, menos como verdadeiro espectáculo. Gisela João, talvez por estar nervosa, arriscou lances demasiado altos (e sofridos) em Fado para esta noite e Meu amigo está longe, com prejuízo para ambas. Mas depois voltou a ser ela própria, ou seja, voltou ao seu melhor, num contagiante O senhor extraterrestre e num belo e tocante Labirinto ou não foi nada. A Noite de São João, que se seguiu, pareceu demasiado “despachada” para que surtisse o devido efeito na audiência (e este é daqueles temas que assentam como uma luva na voz e na capacidade de interpretação de Gisela), mas o que se seguiu salvou tudo: um extraordinário As rosas não falam, de Cartola, sem qualquer excesso, pelo contrário, com um arrebatamento vocal digno dos seus melhores momentos; depois (A casa da) Mariquinhas, com o sal que faltara à Noite de São João; e, por fim, de papel na mão (que a letra é extensa e Gisela não quis esconde-lo), um belo Volver a los 17, de Violeta Parra.

Mudança de “cenário” (numa tela no fundo do palco, haviam pousado já uns flamingos em fotos gigantes, lembrando mais a National Geographic do que a multiculturalidade ibero-americana): Yomira John, do Panamá, começou traída pelo microfone (demasiado baixo, só acertado mais tarde) e não impressionou nos dois primeiros temas. Só quando se atirou a Yo vengo a ofrecer mi corazón, de Fito Páez, conseguiu mostrar aquilo de que é capaz. Mas fê-lo como se estivesse a medir o pulso à plateia: moveu-se entre cumbias e boleros, com uma exaltante passagem pelas tradições negras de que o Panamá se impregnou, deixando no ar uma sensação de estranheza e desacerto. A fechar, ainda assim, arrebatou o público com Honrar la vida, de Mercedes Sosa (“Hay tanta pequeña vanidad/ En nuestra tonta humanidad/ Enceguecida”) e, por fim, com Tío Caimán, uma célebre e feérica canção de Carlos Francisco Chang Marín (1922-2012), poeta e compositor do Panamá, celebrizada pelos chilenos Quilapayún e Inti Illimani.

Nova mudança de cenário (os flamingos permaneceram) e mais um azar: quando a cantautora Mariela Condo cantou Kikilla, um arrullo (cantiga de embalar) indígena, teve a acompanhá-la (além dos músicos) um som contínuo, semelhante a uma gaita-de-foles desafinada. Era, afinal, um alarme de incêndio a soar nas imediações, o que obrigou a suspender o espectáculo por 15 minutos e levou à comparência de três viaturas dos bombeiros mesmo à porta do teatro. Isto teria desanimado qualquer um, mas a cantora, os seus cinco músicos (dois dos quais portugueses) e uma parte considerável do público resistiram estoicamente. E quando ela voltou, foi como se nada (ou quase nada) de aborrecido se tivesse passado. Dona da voz mais aguda da noite (com um timbre próximo de soprano coloratura), Mariela foi também a presença mais melancólica, em contraposição à força de Gisela ou à rítmica de Yomira, como se dela emanassem as dores de um continente envoltas em surpreendente doçura. Algo eterno y fugaz antecedeu Duerme negrito (popularizada por Atahualpa Yupanqui e Mercedes Sosa) e Deja que salga la luna, do mexicano José Alfredo Jiménez (1926-1973). Depois cantou composições suas, como El trigo y el Sol e Bajo la lluvia (outra canção de embalar), terminando o espectáculo com uma sequência onde a festa também se insinuou: El canelazo, El Curiquingue (um tema tradicional do Equador) e, por fim, Flor de Quebrada, onde a sua voz mais se aproximou das tonalidades do canto lírico.

Quem esperava uma canção a três, enganou-se. Voltou Gisela João para o que podia ter sido uma “despedida” em nome de todas (que apenas se juntaram no palco para os agradecimentos finais): uma imponente La Llorona, de Chavela Vargas, que chegaria, por si só, para mostrar que, mesmo quando nem tudo lhe sai bem, Gisela é uma grande cantora.

Apesar das boas intenções da programação, teria sido preferível ouvi-las em palcos só delas, sem a pressão “da senhora que se segue”. Com Gisela, isso sucederá em breve (em Março e Abril nos coliseus). Talvez Yomira e Mariela voltem, nesse outro contexto. O mérito maior da organização da Lisboa 2017 – Capital Ibero-Americana de Cultura, e esse já ninguém lho tira, foi dá-las a ver e ouvir em Portugal. E foi bom conhecê-las, mesmo neste fugaz mosaico tripartido.

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