Um blues para a escravatura moderna

O nova-iorquinio James Hannaham quis fugir ao óbvio sobre raça e escravatura e escreveu um romance partindo de uma pergunta: a vontade de subjugar faz parte da natureza humana? Chama-se Fruta Deliciosa, uma trágica ironia onde um dos narradores é a droga.

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No momento em que foi dado como certo que Trump seria o próximo presidente dos EUA, James Hannaham enviou um SMS a um amigo, romancista como ele. “Já viste como é tão fácil passar a ser um escritor dissidente?” Hannah Ensor

No momento em que foi dado como certo que Donald Trump seria o próximo presidente dos EUA, James Hannaham enviou um SMS a um amigo, romancista como ele. "Já viste como é tão fácil passar a ser um escritor dissidente?" O material de que é feito o mais recente livro de Hannaham e a sua própria identidade – "sou um negro americano, gay" – colidem em tudo com o discurso que fez eleger Trump e que em simultâneo gerou um movimento de contestação e de reacção em grande parte do universo literário americano: "Há muita gente determinada a não deixar que isto tudo se e isso é inspirador", refere James Hannaham numa altura da história do seu país em que é inevitável falar de política sempre que se fala com um escritor. No caso de Hannaham, alguém que publicou um livro centrado nas modernas formas de escravatura e em todos os modos de exploração de um ser humano por outro ser humano. Exploração económica, sexual, de raça, civilizacional. Chama-se Fruta Deliciosa, venceu a última edição do PEN/Faulkner Award, um dos mais prestigiados prémios das letras americanas, e acaba de ser publicado em Portugal.

É terça-feira, passam três semanas desde as eleições. Cheira a lareira nas ruas tranquilas do bairro de Clinton Hill. Chove e já se acendem as primeiras luzes a anunciar a noite apesar de serem quatro e meia da tarde. Num pequeno café na cave de um prédio antigo, Hannaham aquece as mãos numa chávena de chá depois de um dia de aulas de escrita criativa no Pratt Institut, em Brooklyn, Nova Iorque, onde é professor. Meio a rir, diz que o mau humor não o larga desde esse dia 8. O desabafo sai-lhe num tom que se reconhece como o mesmo de Fruta Deliciosa: directo, irónico, perturbante, com as palavras escolhidas para atingir o efeito. O livro foi publicado há mais de um ano, mas agora parece assumir um carácter ainda mais político. “Quando Trump ganhou pensei numa coisa em que já pensara quando estava a escrever o livro: será que é da natureza humana tentar controlar outras pessoas, subjugá-las e satisfazer-se com isso? É uma questão que não tem nada a ver com raça. Pode ter a ver com a subjugação de mulheres por parte dos homens”, diz num inglês sem sotaque que revela uma viagem maior do aquela entre o Bronx, onde nasceu, e Brooklyn, onde vive.

No princípio do livro, Eddie, 17 anos, guia sem parar desde uma quinta na Flórida até uma pequena cidade do Minnesota. Perdeu as mãos há pouco tempo. Transporta ainda as feridas abertas e a sensação dos dedos no volante. Foge. Para trás deixou Darleene, a mãe, dependente de crack, e um passado cheio de trauma. Quer dar uma pausa a esse tempo para mais tarde voltar. Pressente-se que para um ajuste de contas ou o desvendar de um mistério relacionado com a morte do pai, Nat, um activista contra os supremacistas brancos do sul, assassinado tinha Eddie seis anos. Foi quando Darleene deixou de suportar a vida. Na tranquilidade que a sua vida parece assumir no Minesota, Eddie mantém um silêncio acerca do modo como perdeu as duas mãos e da relação que mantém com a mãe. Ela ficou na Fruta Deliciosa, o nome da exploração agrícola de onde Eddie fugiu, a trabalhar num regime de escravatura que lhe alimenta o vício e a mantém refém. A ela e a centenas de pessoas que vivem como espectros.  

A voz dissonante

Com uma estrutura clássica, o livro joga com a cronologia, viajando entre geografias – Texas, Louisiana, Florida, Minnesota – e entre passado e presente. Reconstitui a relação de Darleene com Nat, o nascimento de Eddie, a vida de dependência e de prostituição da mãe, a ida para a quinta. E é narrado na terceira pessoa ou na primeira, uma voz que vive na cabeça de Darleene, dá pelo nome de Scotty e é nada mais que o crack. “Digo à Darleene que todo o problema da humanidade é que tens um corpo, tens de ter um tempo e um lugar. Mas quando vocês todos têm um tempo e um lugar, vocês todos não têm merda nenhuma… a única coisa que o tempo faz é passar.” Scotty fala assim e é apresentado como o grande trunfo de Hannaham neste romance que tem sido muito bem tratado pela crítica. Hannaham acha, no entanto, que lhe é dada excessiva importância e distrai do que para ele é essencial no livro. Scotty permitiu-lhe o humor, o sarcasmo que o fez chegar ao fim do livro e suportar o horror. Espera que tenha o mesmo efeito sobre o leitor. “Scotty para mim não é um diferencial de venda. Não foi assim que o pensei. Tentei seguir uma voz funcionasse e fosse disruptiva, mas que seria acima de tudo divertida. Foi sobretudo o meu modo de resolver um problema. Eu tinha Darleene que teria uma voz parecida com Scotty, mas não queria que ela soasse àqueles documentários sobre televisão do real.” Queria alguma coisa mais ambígua. Como falar de Darleene sem parecer que havia uma câmara a espreitar pelo seu ombro? “Veio-me a ideia de pôr a droga a falar. Não sabia como iria soar, fui indo no livro e soou a uma espécie de humor doentio. Acabou por ser perspectiva invulgar e o humor tornou-me capaz de terminar o livro, enquanto escritor e talvez faça com que o leitor o consiga terminar. Muito do material é muito duro, negro, sofrido, difícil de lidar. Fiz muita pesquisa sobre tráfico humano e não há nada no romance que seja nem de perto tão duro. Não há comparação. Mas eu teria de representar isso de alguma maneira. O trauma e a violência não eram o que eu queria que as pessoas retivessem, mas que a ficção tivesse a textura da vida e permitisse chegar ao fim do livro, com todas as diferentes sensações e conflitos. Uma das minhas sensações foi a de que não deveria estar a rir daquilo porque é horrível, mas a vida é uma tragédia hilariante.”

Faz uma pausa. “Vê porque digo que não ando com muito bom humor?” Olha o chá, mas não o bebe. Resumindo, queria a atenção para o presente da escravatura, uma realidade em muitas explorações agrícolas sobretudo no Sul dos Estados Unidos, que independe da raça, mas está ligada a um passado onde a raça determinou a relação entre subjugar e ser subjugado. “A minha forma de entrar no tema foi através da raça”, conta. “Mas aquilo em que estava realmente mais interessado era na relação entre pessoas que são exploradas no seu trabalho e as pessoas que as exploram. A discriminação racial é parte disso, mas não creio que explique tudo. Acho que é uma desculpa para o abuso laboral. Abre o tópico para muitas outras situações e permite ao livro ser sobre muitas outras coisas que não esta específica de pessoas negras no sul.” 

A ideia começou a desenhar-se na sua cabeça estava ainda a escrever o seu primeiro romance, God Says No (2006), onde conta a dificuldade de um rapaz católico em assumir a sua homossexualidade. “Estava a terminar a faculdade e tive uma disciplina com o seguinte nome: Cultural Tourism, Slavery Museums and the Modern Neo-Slavery Novel. Li muitos livros, a maioria de negros americanos. Todos tinham que ver com escravatura actual em muitos aspectos.” O facto de estará a trabalhar num romance muito diferente não o afastou do tema. “Eu queria ver como é que eu podia contribuir com alguma coisa nova para este grupo de livros e que me parecia pertencer a uma espécie de tradição em que eu aparecia apenas como um jovem romancista a escrever sobre escravatura”. A pergunta agora era: “Que nova perspectiva poderia eu trazer?” Foi quando leu Nobodies: Moder American Slave Labor and the Dark Side of New Global Economy, do jornalista John Boewe (2008). Cada capítulo conta uma história real, diferente, de abuso laboral à volta do mundo. Cada história tem mais ou menos uma página e meia.” Lá está a de uma mulher negra escravizada na Flórida em 1992, mais ou menos o tempo em que decorre a acção central de Fruta deliciosa, entre o início da década de setenta e meados de noventa, com múltiplas referências à cultura musical, popular, à política. James Hannaham continua: “Essa história perturbou-me. Percebi que o tal livro que tinha na minha cabeça deveria ser sobre isso, sobre este presente, não precisaria de ir ao passado para falar de escravatura. Foi uma percepção tão perturbante quanto emocionante no seu sentido mais deprimente e perverso. Achei que as pessoas deviam saber disto, estar mais alertadas para isto, ter esta versão moderna de escravatura no contexto da escravatura mais global. Em alguns aspectos é uma coisa nova mas no essencial o princípio mantém-se. Não é legal. E há outro sentido: a escravatura atravessa gerações. Há diferenças técnicas, mas é a subjugação de um grupo de pessoas por outro grupo de pessoas, trabalho barato, explorado. Não há nada de novo nisto.”

Chamou a essa quinta Fruta Deliciosa e a melhor justificação para a escolha desse nome pode estar numa frase de Scotty. “As pessoas dão nomes a tudo, e então nós pensamos que o nome é a verdade.” James Hannaham diz isso de outra forma. “O sonho da boa comida, saudável, de uns, é o pesadelo de outros. Há ironia nesse nome?”

Escuta-se Hannaham e não se sente demagogia. Andou pelas estradas da Flórida, conhece o sul, contaram-lhe coisas, viu outras, mas não quis saber uma história em particular para construir a sua Darleene. “Não queria apropriar-me da vida de alguém nem que isso me limitasse, criativamente, emocionalmente.” Darleene é ambígua, como o livro também é. Mesmo quando se fala de raça. Se Nat lutava por um pouco de igualdade, Bethella, a irmã de Darleene, carrega um passado cujas marcas não se apagam. “Todos os negros sabem reagir a uma tragédia. Basta sair-se com um carrinho de mão cheio da Boa Velha Raiva, despeja-lo em cima da Frustração do Costume e regá-la com uns Alguém Devia…” Bethella reagiu assim ao ver os pulsos sem mãos do sobrinho, em vez de perguntar “como” foi que aconteceu.

James Hannaham quer fugir ao óbvio, ao cliché, e consegue um registo fulgurante, narrativa ritmada, linguagem precisa, conjugando fantasia com passagens quase documentais, a consciência a entrar pelo demencial, a sedução do crack como modo de sobrevivência. “Quando trabalhas no duro”, pensa Darleene, “e não estás a ser verdadeiramente paga, e não podes ir para lado nenhum, toda a gente sabe o nome que se dá a isso. Todos na quinta sempre a comparar com o que se fazia nos tempos antigos, mas estão só a exagerar porque estão furiosos – nesses tempos ninguém era pago. Não é essa a definição de escravatura? Não te pagam? E se assinas um contrato fodido e concordas com a dívida que eles continuam a empilhar – bem, anda toda a gente a discutir calmamente a definição dessa merda o tempo todo.” Este pensamento de Darleene é revelador de um passado em que ela prometia ter sido mais do que foi. Andou na universidade numa família onde ninguém o fizera antes. É ela a falar através de Scotty que tanto conhece a linguagem do vagabundo quanto a do privilegiado, uma voz que tanto soa a jazz como a blues, mas que por vezes soa algo dissonante. Propositadamente? A conversa com o escritor não responde a isso. O júri do PEN/Faulkner não teve dúvidas quanto às qualidades do romance entre mais de 500 candidatos. Considerou-o ao mesmo tempo uma tremenda fábula americana “sobre a exploração e raça”, um thriller cómico e um retrato íntimo entre uma mãe perturbada e o seu filho espoliado. É também um livro político. Diz Hannaham: “Talvez tenha um ponto de vista político. Todos os livros são políticos à sua própria maneira, mesmo que evitem a ideia de política. Mas não sei que política é a dele. As de um homem negro gay? Um romance americano que não tem negros, não tem gays, nem explorados não pode ser chamado de não político. Fazer a escolha de não os incluir é ser político? Só porque só tem pessoas brancas não é político? Há pessoas a enganar-se a si mesmas ao pensar que não estão a ser políticas ou então a minha definição do que é isso é um pouco diferente. Este não é um livro de embalo. Gosto que os livros sejam sobre um largo espectro de possibilidades, que perturbem”,

Há uma música. Ela vive nele, na sua biografia. Quando pensou em ser alguma coisa pensou antes de tudo na música. Mas fez teatro, foi performer em palcos de Nova Iorque, mais tarde designer; escreveu em jornais, desenhou páginas do Village Voice e pouco depois estava a escrever sobre música nessas mesmas páginas. “Se há uma continuidade neste percurso estranho é a arte”, dá uma gargalhada. E faz nova pausa. Volta à raça e aos subterfúgios à volta dela. O seu romance ganhou prémios prestigiantes e “só foi vendido para três países”, refere. “Dizem-me que o romance de um escritor negro americano não vende na Europa. Não sei se é verdade ou uma explicação preguiçosa. O facto é que só estou traduzido em Portugal, Itália e Holanda. Parece um queixume?” Nova gargalhada. Não quero que soe a qualquer coisa como cry me a river”, título da canção de Ella Fitzgerald, também expressão para “bem podes chorar”.

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