Essa ferida negra, 2016

Arjan Martins virou a coroa imperial de pernas para o ar, e com ela as naus do maior esclavagista do oceano Atlântico.

1. No Centro do Rio de Janeiro, o mundo acaba todos os dias. Portas se fechando, mind the gap, repete a boca bilingue do metro, então hordas entram, hordas saem do ar gelado do inframundo para 59% de humidade, lixo, mijo e papelão, o abandono das seis da tarde em redor da Praça Tiradentes. Mas a esta hora, num velho sobrado, ainda é possível tocar a uma campainha, subir uma escada, e ver como o pintor Arjan Martins virou a coroa imperial de pernas para o ar em 2016, e com ela as naus do maior esclavagista do oceano Atlântico.

2. Tiradentes: aquele cuja cabeça foi espetada num pau, depois de pernas e braços serem puxados no sentido dos vários pontos cardeais, conforme a sentença de D. Maria I “pelo horroroso crime de rebelião e alta traição de que se constituiu chefe e cabeça na Capitania de Minas Gerais, com a mais escandalosa temeridade contra a Real Soberana e Suprema Autoridade da mesma Senhora, que Deus guarde”. A colonização bombava, havia que resguardar o lucro, dar o exemplo.

3. Arjan Martins, 56 anos, nunca verá como um patrão, ou um estrangeiro, os corpos que vagueiam por esta praça. É negro, nasceu pobre, foi estudar arte aos 30. Era, e continua a ser, uma excepção no panorama de “limpeza étnica da arte contemporânea”, citando as palavras do crítico Michael Asbury num texto anexo à exposição. O ano 2016 foi um bom ano para a limpeza étnica, em geral. Slave trade, dizem as telas de Arjan entre Américas e Áfricas, coroas e caravelas viradas ao contrário. E é possível fazer uma pequena rota da ruína seguindo estas telas desde o fundo da Praça Tiradentes (nos dois sobrados da Galeria Gentil Carioca onde elas estão expostas) até ao Museu de Arte do Rio (o MAR, um dos dois novos museus do dito Porto Maravilha), que deveria culminar a euforia da era olímpica, e agora coincide com a derrocada diária de políticos, empresários e bandidagem delux, em geral. É que se na galeria estão quase todas as telas desta série, uma das mais contundentes foi incrustada no MAR: no meio das porcelanas e das pratarias, dos retratos a óleo e das sedas, das gravuras e dos muitos tesouros de coleccionador que compõem a exposição sobre a imperatriz Leopoldina. Austríaca, loura, de olhos azuis, ela desembarcou no Rio de Janeiro para misturar o sangue dos Habsburgos no sangue dos Braganças, consumando o seu casamento com Pedro I. E após sete partos sobreviveu enfim o varão que havia de ser Pedro II, louro, de olhos azuis, com aquelas bochechas dos Braganças. Mas Leopoldina nunca deixou de ter tempo para as artes, as ciências e a política. Esta exposição propõe olhá-la com uma das autoras da independência do Brasil. E quando o curador Paulo Herkenhoff convidou Arjan a ocupar uma parede, ele escolheu a tela em que a cabeça de uma menina negra flutua entre as Américas e Áfricas, mão fechada, enfiada na boca, como se a mordesse. “Ela não entende o que está acontecendo, mas nos indaga.”

4. Esta menina vem de um disco do pianista de jazz Oscar Peterson, em 1968. Nessa fotografia, a menina tem um olhar risonho, mas na tela de Arjan não. Ele desdobra-a em outras telas, e a expressão vai mudando. “Tenho várias fotografias que foram migrando para a pintura”, conta-me ele. A maior parte foi “garimpada” na feira de antiguidades da Praça XV, sem identificação de fotógrafo e retratado, “então essa identidade pode ser plural, diversa”. O eixo Praça XV-Cais do Valongo, ao longo da Guanabara, conheceu o maior fluxo de escravos das Américas. Arjan é um descendente disso, brasileiro negro-negro. Mas foi preciso chegar 2015, e ele ter passado um mês numa residência artística em Londres, para sentir o alcance dos navios que asseguraram o tráfico negreiro.

5. “O Brasil pouco comenta essa transacção”, diz Arjan. “Acredito que haja um silêncio de ambas as partes [Brasil e Portugal].” E ali em Londres, entre o Real Observatório de Greenwich, a National Gallery, a Tate e o Museu Britânico, o feixe colonial propagou-se na cabeça dele, partindo da simples visualização das embarcações, até chegar à coroa invertida. “Com a coroa, estou comentando o barroco e o impacto dessa tirania que simultaneamente perdoava aos colonizadores, distribuía terras, títulos e o perdão pelo clero.” Uma “chaga que ainda está aberta, com uma fissura muito profunda”. Passei os últimos anos a pensar na história luso-brasileira como uma longa corda de mortos. Neste mês de Dezembro chego ao centro do Rio de Janeiro e uma corda atravessa as telas de Arjan Martins. “A corda tem significados muito densos, apreender, aprisionar, resgatar, suprimir. Ambíguas funções.”

6. Mas não será ele a traduzir os sentidos possíveis do que pinta no descalabro de 2016. Não lhe cabe responder a isso. “Citando uma frase de Cildo Meireles, o público no Brasil é uma entidade muito abstracta. Se o meu trabalho é uma arte que produz sentidos, vou deixar isso em aberto. Mas quando vejo uma obra dessas no MAR [museu de grande público], ela está tendo uma escuta, está sendo apreciada. É uma espécie de grito, do Valongo à Praça XV.” Falta chegar ao Tejo.

7. Um dia, há meia dúzia de anos, Arjan conheceu Lisboa por umas horas, numa escala de um voo para Dakar, onde ia participar numa bienal de arte. “Saí, andei até ao Tejo, fiquei um pouco emocionado com toda aquela atmosfera da arquitectura”, conta-me. “Subi ao Bairro Alto e uns rapazes fizeram um rugido meio punk quando me viram passar. Mas não houve nenhuma agressão física. Uns cem metros adiante, encontrei uma papelaria. Um artista entra numa papelaria e parece que chegou ao universo dele. Então fui feliz. Comprei uns cadernos, uma espátula e fui para o aeroporto. Mas lá fui impedido de trazer minha espátula. Para um oficial da alfândega portuguesa, alguém com a minha aparência e uma espátula era um possível terrorista. Eu disse: então quero que você faça uma doação a uma instituição de crianças carentes.” Antes, na cidade, ao entrar numa loja de roupa para pedir uma informação, “tinha uns senhores, e eles não foram muito corteses”. Não quis dar importância a isso. “Já cheguei com uma certa blindagem, sabia que estava noutro país, com outros códigos.”

8. Em Londres, “as pessoas são muito frias, mas não senti racismo directo, desconforto em relação à minha pele, à minha cor”. Houve só “um impasse no aeroporto, queriam verificar quem era esse brasileiro que vinha fazer uma residência, chamaram uma intérprete para o diálogo com a polícia”. De resto, Londres foi decisivo para Arjan atar a sua corda. “Desenhei muito no British Museum, na Tate, na National Gallery. Isso foi me alimentando. Em nenhum momento confundo essa passagem por Londres com uma euforia deslumbrante. Teve uma melancolia saudável, que tive de resolver no meu trabalho.” Portugal não enfrenta a sua corda de mortos, não presta tributo a indígenas e escravizados e raramente chama a si os descendentes dessa corda. Quando Lisboa puder ser um pouco de Londres para Arjan, a história terá sacudido alguma terra.

 

 

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