Audemars Piguet: Sem medo dos smartwatches

É a última fabricante de alta-relojoaria que ainda está nas mãos das duas famílias fundadoras e realça a maior diferença entre as suas peças de arte mecânica e um relógio digital: além de exclusivos, duram para sempre.

A Audemars Piguet produz, anualmente, 40 mil relógios
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A Audemars Piguet produz anualmente 40 mil relógios FABRICE COFFRINI/AFP
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Jasmine Audemars, presidente do conselho de administração DR

No atelier de restauro de uma das mais antigas manufacturas relojoeiras do mundo, em Le Brassus, no Vale de Joux, na Suíça, o silêncio impera. Em pequenos compartimentos de vidro encontram-se peças microscópicas. Angelo, um dos experientes relojoeiros da Audemars Piguet, manuseia-as com uma pinça, um olho a espreitar, por cima da lupa, o passo-a-passo desenhado em manuais antigos. Nada é feito ao acaso e tudo segue métodos ancestrais – este trabalho de restauro, que preserva a tradição por oposição à evolução tecnológica desmesurada, é o que há de mais especial num relógio mecânico e é o símbolo máximo da Audermars Piguet. 

É nesta pequena sala, com vista para as obras da Maison des Fondateurs – o novo museu da empresa familiar suíça previsto para 2019 –, que trabalham o italiano Angelo Manzoni e o galego Francisco Pasandin, os únicos relojoeiros especializados no restauro de relógios antigos.

Francisco Pasandin tem 58 anos e trabalha na Audemars Piguet há 36. Mudou-se da Galiza para a Suíça aos três anos e divide o seu tempo entre o pequeno atelier e a paixão pela corrida – em Dezembro vai participar na maratona da Jamaica, conta orgulhoso. Durante a nossa visita ao museu, é Francisco quem nos conduz. “Normalmente não faço visitas guiadas, mas era o único relojoeiro espanhol disponível. E falo muito português porque tenho muitos amigos portugueses que correm“, justifica, levando o grupo de jornalistas por entre salas que guardam a história da fundação da empresa, os primeiros relógios, as suas importantes grandes complicações (mecanismos que vão para além da mera indicação de hora), até ao atelier de restauro.

“Os relógios são eternos porque há sempre alguém como eu e o Angelo que podem restaurar um relógio passados muitos anos. Quando recebemos um relógio assim, imaginamos a sua história e pomo-nos na pele do relojoeiro que o criou”, explica Francisco, mencionando o seu “dever” e dos colegas de passar estes conhecimentos às novas gerações – a partir de Janeiro, o atelier de restauro terá uma terceira pessoa. “É um jovem. Vem aprender todas as técnicas.”

Em cima da mesa principal do atelier, está um anel com pedras preciosas que esconde um mostrador de relógio e alguns relógios de bolso. Um deles é de 1899 e tem esqueleto em ouro amarelo. “É o relógio que todos os relojoeiros anseiam reparar. Tem 1168 peças. Tivemos de recriar muitas delas porque já não existiam”, diz, segurando a peça com orgulho (e cuidado), e deixando-nos a ouvir as partituras musicais das repetições. Demorou 400 horas a restaurar.

A Audemars Piguet foi fundada em 1875 pelos mestres Jules-Louis Audemars e Edward Auguste Piguet. Hoje, à frente da empresa, estão Jasmine Audemars e Olivier Audemars, a quarta geração de descendentes directos dos dois fundadores, orgulhosos por manterem a sua independência financeira ao invés de pertencerem a um grande conglomerado de luxo. “Não diria que é difícil manter a independência. É preciso disciplina. Temos de trabalhar muito. E temos sempre de manter as contas muito sólidas porque essa é a maneira de investirmos no futuro, desenvolver a empresa. Mantermo-nos independentes é um desafio, uma grande responsabilidade”, diz ao PÚBLICO a madame Audemars, presidente do conselho de administração da Audemars Piguet, na recém-inaugurada boutique da marca no centro de Genebra.

Jasmine Audemars foi jornalista durante 23 anos, 12 dos quais chefe de redacção do Journal de Genève. “Há algo muito parecido nestas duas áreas. Tanto o jornalismo como a indústria relojoeira são um negócio de pessoas. É preciso dedicação total, talento”, compara. Questionada sobre se receia que as gerações mais novas comecem a pensar esta indústria como “obsoleta”, Audemars é peremptória: “Não. Não tenho medo. Claro que todos pensaram que seria o fim da relojoaria tradicional com o início da produção de smartwatches mas são dois mundos diferentes.”

Segundo um relatório da International Data Corporation divulgado no final de Outubro, houve uma quebra de 51,6% nas vendas destes relógios inteligentes. “O produto ainda não está bem pensado. Talvez um dia teremos um verdadeiro smartwatch, que não tenha de estar ligado a um telemóvel ou a um computador e cuja bateria dure mais de 12 horas”, fundamenta. E distingue: “O que nós fazemos é tão diferente… É uma espécie de jóia, talvez um tipo de arte. É algo que está vivo. Conseguimos ouvir. Se olharmos para o interior de um relógio, conseguimos percebê-lo. Se abrirmos um smartwatch ou um smartphone, o que vamos ver? Nada de interessante. É por isso que vamos sobreviver”, reforça.

Também François-Henri Bennahmias, CEO da Audemars Piguet desde 2012, afirma que o mundo dos smartwatches e o da alta-relojoaria de luxo são “completamente diferentes”. “Não significa que os smartwatches não sejam uma coisa boa e tiveram um grande impacto na nossa comunidade mas, no fim, há espaço para os dois. Estamos a falar de mecanismos nobres. Eles estão a fazer relógios para as massas”, atestava numa entrevista à Bloomberg, em Abril.

Segundo dados da Federação da Indústria Relojoeira Suíça, em 2015, as exportações desceram pela primeira vez desde 2009 para 21,5 mil milhões de francos suíços (cerca de 20 mil milhões de euros), o que representa uma quebra de 3,3% em relação a 2014. Em Outubro deste ano, o sector teve mesmo a sua queda mais acentuada, com um valor de exportações 16,4% mais baixo do que em 2015.

Apesar dos números, que levaram alguns concorrentes, como a Piaget, a baixar preços, Bennahmias frisava que a Audemars Piguet contraria essa tendência: no primeiro trimestre deste ano, as suas vendas subiram mesmo 5% comparativamente ao mesmo período do ano anterior. “Podes ir a cadeias de fast-food e podes ir a um restaurante de três estrelas Michelin. Nós somos esse três estrelas. Haverá sempre pessoas, algures no planeta, que vão gostar de ir a um restaurante de três estrelas Michelin”, equipara.

Ao PÚBLICO, Chadi Gruber, responsável de marketing da marca, explicou que a Audemars Piguet não sente tanto essas quebras porque “não está dependente de apenas um mercado”. “Dividimo-nos: 35% Asia, 35% Europa, 20% Estados Unidos e 10% Médio Oriente e África. Isto permite-nos alguma segurança quando há uma crise aqui e ali”, reitera. Com o Brexit, e a consequente desvalorização da libra, a marca vendeu mesmo mais relógios em Londres, dizia-nos Jasmine Audemars. “Mas no futuro, de um ponto de vista europeu, acho que será uma história um pouco triste”, lamenta. Mais optimista, François-Henri Bennahmias, dizia à Bloomberg que “o consumidor é muito inteligente, sabe imediatamente onde pode ir comprar o relógio ao melhor preço”.

A Audemars Piguet produz, anualmente, 40 mil relógios. “Nem mais um, nem menos um”, confirma Chadi Gruber. É um número consideravelmente baixo quando comparado com o da produção de uma grande marca como a Rolex, que produz um milhão de relógios por ano mas é uma forma de evitar o excesso de produção. “E de garantir qualidade e assegurar também que as nossas peças são desejáveis e exclusivas”, acrescenta Gruber, informando que um relógio Audemars Piguet custa, em média, 30 mil francos suíços (27,9 mil euros).

Na visita ao museu, conduzida por Francisco, o relojoeiro explica-nos que o primeiro relógio que pôs a Audemars Piguet no mapa foi um relógio de bolso com calendário perpétuo (que dá conta dos meses que têm 30 ou 31 dias e dos anos bissextos). Estávamos em 1882. Até aos anos 1970, criaram alguns mecanismos inovadores no sector – entre os quais o relógio de bolso mais estreito do mundo (1925), o primeiro movimento esqueleto (1934) ou o automático mais plano (1969) – mas foi em 1972 que criaram o Royal Oak, o primeiro relógio desportivo de luxo, em aço, que ganhou uma versão feminina em 1976. É o modelo mais icónico da marca e o que mais metamorfoses tem sofrido até hoje.

Com um mostrador octogonal e oito parafusos hexagonais expostos, o seu design foi, numa primeira instância, considerado vulgar pela relojoaria clássica antes de se tornar um ícone e na peça mais vendida da marca.

Para assinalar o 40.º aniversário da versão feminina, a Audemars Piguet convidou a joalheira italiana Carolina Bucci para o reinventar – o Royal Oak Frosted Gold tem, como o nome indica, um acabamento em ouro e é o resultado de uma colaboração de três anos entre Bucci e a marca suíça. Ao contrário de outras versões perfeitamente polidas, este tem um aspecto mais texturizado. “No mundo da relojoaria, que é tão preciso, este acabamento não é tanto assim. Há uma ligeira aleatoriedade. Não tem dois lados iguais e todos os relógios vão ser ligeiramente diferentes”, explicou ao New York Times no lançamento da nova peça.

O novo relógio está disponível em ouro branco com o mostrador rosa pálido ou em ouro rosa com um mostrador branco brilhante. “É um relógio que fala com uma mulher desde o momento em que ela o vê pela primeira vez. De cada vez que mover o seu pulso, tem vida.”

O PÚBLICO viajou a convite da Audemars Piguet

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