Cinzas e nevoeiro

Ao contrário do pretenso despotismo iluminado de Fidel, François Hollande propôs-se ser “um Presidente normal”. Só que essa “normalidade” cedo se revelou uma caricatura invertida do abuso perverso da autoridade encarnada por um homem só.

Hoje, 4 de Dezembro, Fidel Castro é enterrado em Santiago de Cuba, o primeiro-ministro Matteo Renzi poderá demitir-se depois da sua provável derrota no referendo constitucional em Itália e o candidato da extrema-direita sairá eventualmente vencedor das presidenciais austríacas (seria a primeira vez que o representante de um partido criado por antigos nazis chegaria ao poder num Estado europeu desde 1945).

Outra coincidência, outro sinal: enquanto a urna com as cinzas de Fidel seguia ainda a caminho de Santiago, François Hollande anunciava a decisão de não se recandidatar às presidenciais francesas do próximo ano (é também a primeira vez que isso acontece na história da V República). Nessas eleições, a direita clássica mais conservadora encarnada por François Fillon e a extrema-direita de Marine Le Pen são dadas, para já, como favoritas.

Fidel simbolizava uma ilha fechada e parada no tempo, apesar dos sonhos anti-imperialistas que protagonizou – um caso único pela sua longevidade em toda a América e, até, no hemisfério ocidental. Foi um dos rostos míticos da utopia comunista transformada em ditaduras implacáveis, da Rússia de Estaline à China de Mao. E foi, como os seus congéneres, celebrado por multidões formadas no culto do chefe (no caso cubano, também por causa do estúpido embargo americano que se seguiu à crise dos mísseis nos anos 1960). Entretanto, a dissidência pagava-se com o exílio, a prisão e a vida.

Aos incontestáveis sucessos do regime, como as campanhas de alfabetização e os cuidados de saúde, sem paralelo no Terceiro Mundo, contrapõem-se as grandes calamidades económicas, em especial na agricultura, que tornaram Cuba refém da dependência soviética e a levaram posteriormente à servidão do turismo de massas.

O culto da personalidade desenvolvido por Fidel inspirou toda uma geração de líderes terceiro-mundistas hoje em vias de desaparecimento, sobretudo na América Latina, como foi o caso de Chávez. Mas a esse crepúsculo de um populismo revolucionário de esquerda sucede hoje a expansão de um populismo nacionalista de direita (ou de contornos mais difusos, como o movimento de Beppe Grillo em Itália) impulsionado pelo Brexit e a vitória de Trump. É um fenómeno notório em países da antiga órbita soviética ou, agora, na Áustria, e tende a projectar-se no horizonte das eleições francesas e alemãs do próximo ano.

Ao contrário do pretenso despotismo iluminado de Fidel, François Hollande propôs-se ser “um Presidente normal”. Só que essa “normalidade” cedo se revelou uma caricatura invertida do abuso perverso da autoridade encarnada por um homem só. Com efeito, Hollande representou, de forma patética, a deliquescência da autoridade democrática, através do seu percurso errático, sem visão, sem convicções, sem firmeza, abrindo uma avenida às tentações autoritárias, identitárias e isolacionistas latentes numa sociedade francesa obcecada com os fantasmas do seu declínio histórico.

Mas o caso francês é apenas a ilustração mais inquietante, tratando-se de um dos maiores e influentes países europeus, do nevoeiro que paira sobre uma Europa politicamente desvitalizada, onde uma elite tecno-burocrática vai vegetando entre as cinzas da democracia.

P.S.: Para além do que se possa pensar sobre o seu desfecho provisório – à primeira vista, positivo –, o processo da Caixa Geral de Depósitos foi também um exemplo da deliquescência cívica da nossa elite tecno-burocrática e da falta de maturidade democrática da nossa elite política. Se, amanhã, as sereias do populismo espreitarem por aqui, não se espantem. De facto, não vivemos numa ilha.

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