O xadrez de Putin

O principal objectivo russo não reside nem na erradicação do terrorismo nem em assegurar a continuidade de Assad, mas sim em mais uma jogada na sua estratégia que visa redefinir a ordem mundial

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Alexei Druzhinin/Reuters

Desde o Verão de 2015 que forças russas se encontram em território sírio após o presidente Bashar Al-Assad ter convidado Putin a auxiliar o exército sírio no combate às supostas forças terroristas no país. Sob este mesmo pretexto, Putin rapidamente ordenou que a sua Força Aérea realizasse os esforços necessários para se coordenarem com o exército sírio e iniciarem a sua "luta contra o terrorismo". Pelo menos esta seria a introdução ao tópico em qualquer jornal de propaganda russa. Porém, outra realidade impera e a presença russa no Médio Oriente está longe de ser tão nobre como aparenta.

Assad, um dos últimos ditadores no Médio Oriente que sobreviveu à Primavera Árabe, representa um aliado imprescindível para as aspirações russas na região: Putin nunca aceitaria mais uma “transição democrática” conduzida pelos americanos na Síria. Porém, o principal objectivo russo não reside nem na erradicação do terrorismo (em 43 ataques aéreos realizados, apenas um foi confirmado como tendo causado danos às forças do Daesh), nem em assegurar a continuidade de Assad, mas sim em mais uma jogada na sua estratégia que visa redefinir a ordem mundial. Esta estratégia revisionista foi já visível no caso da Crimeia, apesar de todas as tentativas de Putin de esconder o jogo por detrás de falsas legitimações.

Olhemos então para o caso sírio. Em guerra civil desde 2011, foi apenas em 2015 que se deu o primeiro ataque aéreo russo. Porque demorou Putin tanto tempo a intervir? É importante ver a situação sob dois prismas: o primeiro é o risco que a perda de Alepo representaria para a Rússia se esta caísse não para as supostas forças terroristas, mas para rebeldes apoiados pelo Ocidente; o segundo é a necessidade de resolver o assunto pendende da Crimeia, conjugada com o facto de uma profunda crise de refugiados criar um problema grave à Europa.

A questão dos refugiados revelou-se fracturante para Europa e já resultou na ascensão de partidos de extrema direita que mantêm abertamente boas relações com o líder russo. Esta intenção de Putin é clara: os ataques da Força Aérea síria, controlada pelos russos, a hospitais e mesquitas na cidade de Alepo, já controlada pelas forças governamentais, não poderá ter nenhuma outra razão a não ser uma clara tentativa de incentivar estas correntes migratórias. Apesar de estar bastante ciente das derrotas consecutivas de Assad, Putin apenas interveio quando era absolutamente necessário para que os rebeldes não ganhassem o poder na região deixando a corrente de refugiados aumentar o máximo possível.

E onde entra a eleição de Trump nesta equação? Neste momento, em cinco chefes de Estado entre os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, apenas dois (Hollande e May) podem ser considerados liberais e defensores dos direitos humanos. Mas, em Abril de 2017, as eleições francesas poderão reflectir o descontentamento popular já demonstrado nas eleições americanas, com Le Pen a emergir vitoriosa. Se tal suceder, veremos um Conselho de Segurança em que apenas Theresa May se afirmará como representante do liberalismo e em que a União Europeia, depois do Brexit, ficará sem representantes dos seus reais interesses e valores.

Putin terá então caminho aberto para levar a cabo as sua política externa, no Médio Oriente e não só, e assim redefinir a ordem mundial.

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