"Este é o meu corpo. Amem-me, dêem-me pancada. Estou aqui para fazer barulho"

Isabela Figueiredo usa a sua vida para construir outra vida. “Este é o meu corpo e o meu corpo está aqui para tudo, amem-me, dêem-me pancada, façam o que quiserem. Estou aqui para fazer barulho.” Lê-se A Gorda como os gordos comem, sofregamente, sem pensar no amanhã.

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Sete anos depois de se estrear com Caderno de Memórias Coloniais, Isabela Figueiredo publica aos 53 anos o seu primeiro romance Nuno Ferreira Santos

“Eu, Isabela Figueiredo, saí do armário no momento em que fiz a gastrectomia. Passei a ter fat pride [orgulho em ser gorda] no momento em que deixei de ser gorda. Antes de fazer a operação não aceitaria. Faria o que sempre fiz, que foi gozar com a minha gordura, com o meu corpo, com o meu aspecto. Faria os outros rirem-se de mim. Porque é que precisei de me amputar para renascer? Não sei, é como a terra, precisa de ser queimada para ficar fertilizada, não sei. Depois de fazer a gastrectomia e de perder todo aquele peso senti que estava preparada para falar. Fiz a operação em 2010 e em 2011 comecei a preparar-me. Queria escrever sobre solidão, sobre dor, sobre perda. É curioso que o livro seja divertido.”

Sete anos depois de se estrear com Caderno de Memórias Coloniais, livro em que infância, poder, desejo e violência se conjugam em pequenos episódios, Isabela Figueiredo publica aos 53 anos o seu primeiro romance. A protagonista de A Gorda fala na primeira pessoa e tem um nome: chama-se Maria Luísa. É uma personagem tão genuína, tão inteira que não duvidamos tratar-se de uma pessoa. A forma como se expõe é como um pneu a deformar a cintura literária. É alguém que aparece, e que nos diz coisas tão cândidas e desarmantes como: “Digo a verdade por me custar desperdiçar a sua extrema pureza.”

Não é comer é ter fome

Estava um lindo sol de Inverno quando Isabela apareceu em Cacilhas, no largo em frente ao embarcadouro. Vinha com o rosto pintalgado, marcas de uma operação para tirar os sinais da cara. Não quer ser entrevistada no exterior, a luz fere-lhe a vista. Avançamos por uma rua onde abundam esplanadas. Da Cacilhas operária restam as fachadas: mantém-se o pequeno comércio, mas de cara lavada e ao gosto turístico. Fazemos várias tentativas, mas somos barrados: esta estalagem é só para hóspedes, este bar de petiscos está ainda limpezas, só abre ao fim da tarde. Pedimos licença para entrar num café e Isabela, depois de se sentar, troca de lugar: a luz vinda da porta continua a feri-la.

“Perdi a visão central num olho. Tenho alguma visão periférica, mas, se fechar este olho, não te vejo. Contudo, consigo ver algumas coisas que estão à roda de ti. Se focar aquele balcão, não vejo aquele balcão. Contudo, consigo ver as luzes em cima. Tenho uma degenerescência macular causada por descolamento de retina. Tudo aquilo que quero ver não vejo, só vejo aquilo que não quero ver. Só vejo o que é periférico.”

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Tal como a personagem do livro, Isabela nasceu e passou a infância em Moçambique e veio para Portugal depois da independência — fixar-se-ia com os pais na Cova da Piedade, em Almada Nuno Ferreira Santos

Os problemas de vista, assim como a luz e os seus efeitos em objectos e superfícies, é um motivo recorrente em A Gorda. Diz Isabela: “Eu descrevi uma luz que tenho na memória. Agora não suporto a luz, tenho de fugir dela.” Quando a protagonista apresenta a casa que herdou dos pais, somos logo avisados do hall “sem claridade” e dos restantes compartimentos onde recebe “chapadas de luz impiedosa, quer na frente, virada a poente, quer nas traseiras, para nascente”. “A luz dói nos olhos. Custa-me suportá-la, mas amorna o espaço e alegra os dias.” Já perto do fim, na iminência de rever o seu primeiro namorado, outro aviso: “Ele não sabe que os meus olhos já não lêem letras de jornal em papel.”

O enredo amoroso que atravessa o livro é uma paixão de juventude em que Maria Luísa é sujeita a um surtido de humilhações e vilanias a que só o sexo escapa. Desde ter de se esconder dos amigos e familiares, para não o envergonhar com a sua gordura, até se tornar seu amante, quando já está casado e com filhos, até espiar-lhe a rotina doméstica, enquanto fantasia aquela vida para si. E, no entanto, um carteiro, tão parecido com o Jude Law a ponto de só poder ser o Jude Law, haverá de aparecer com uma carta para que a felicidade ainda seja possível com aquele mesmo rapaz da Arrentela, de seu nome David, que a trocou por uma colega de escola e que entretanto ficou careca. Como é possível a felicidade depois de tanta baixeza? Isabela: “Ela tem muitas contradições e a parte onírica é muito importante, ajuda-a a viver no meio daqueles fracassos. Eu devia à Maria Luísa a hipótese de um final feliz. Devia deixá-la pensar isso. Ela tem consciência de que é uma sonhadora. Deixemos a Maria Luísa acreditar que o David Luís vai voltar, isso ajuda-a.”

A Gorda fala menos de comer do que de ter fome. Aquilo de que mais se alimenta nem é de comida, é do passado. O passado está vivo e nem é passado, regurgita e volta ao presente. A vida continua, certamente, mas com as vozes dos mortos a deambularem pela casa, ou a entrarem por ela adentro e a intrometerem-se no quotidiano. Depois da morte da mãe, Maria Luísa está debruçada no balcão da cozinha, a comer melão, e ouve uma voz que a chama. É a voz de uma mãe na rua, a chamar pela filha. Não é a sua mãe, mas vai à janela na mesma: “Havia um ‘eu e tu, coisa única, amarga e doce, do princípio ao final dos tempos, vem’, por isso vou, mesmo sabendo que não é para mim.” Não é a única voz que escuta: “Quando o papá morreu, dei em falar com ele estando sozinha, e havia necessidade de compreender que tipo de loucura era essa.” Sentada à mesa do café, Isabela diz: “A minha mãe era mais sensata, era a pessoa que estruturava aquela casa, mas era do meu pai de quem eu gostava. Ele era o meu melhor amigo de brincadeiras.” O dilema com os mortos está de regresso à vida.

Li as 285 páginas de A Gorda sem interrupções, com a sensação de não ter feito mais nada depois de começar. Roubou-me horas de sono e também não me permitiu estar desperto para outra vida que não a vida de Maria Luísa num jogo de transparências com a vida de Isabela Figueiredo. Mesmo nos momentos em que se interrompe a leitura, fica-se a reler mentalmente o que já foi lido, enquanto se antecipa o regresso ao livro. Não por ser um livro, mas por no livro estar a Maria Luísa e com ela a sua autora, as duas numa só. Lê-se A Gorda como os gordos comem, sofregamente, sem pensar no dia de amanhã. Ou como um febrão em que toda a sordidez e delicadeza da vida íntima é suada. Ou ainda como uma porta a ser arrombada. “Quero pegar na nossa baixeza e torná-la em algo sublime. É sublime a nossa baixeza. Mas também os nossos momentos sublimes às vezes não valem nada, são absolutamente ridículos, então também quero pegar nisso e meter no seu devido lugar.”

A Gorda é um romance gordo, cheio de banhas, de dobras, de corpos dentro de outros corpos a alimentarem-se de outros corpos. Há episódios que surgem como homúnculos. É disso exemplo a paixão de Maria Luísa por João Mário, um aventureiro que abandona o país deixando um endereço de Sines, para onde ela lhe envia cartas todas as semanas, construindo uma relação de remetente sem destinatário. Outro exemplo: o biscateiro Lunático, um meia-leca feioso e pobretana, um faz-tudo muito ágil com as mãozinhas, que providencia o primeiro orgasmo a Maria Luísa no sofá da sala da tia, durante a transmissão de um episódio da série juvenil Fama. Mais outro exemplo: a colega Tony, uma mitómana angolana a quem Maria Luísa se devota como uma escrava, lavando-lhe a roupa, massajando-lhe o corpo, num jogo de submissão cujo fim último é apoderar-se do desejo que o corpo da amiga inspira, desejo a que o seu próprio corpo não pode aspirar.

A Gorda abre com a frase: “Quarenta quilos é muito peso.” Com a gastrectomia, quarenta quilos são eliminados, mas ser gordo é também ter memória de ser gordo. Maria Luísa começa “a ficar leve, quase a levantar voo”, mas ainda pensa como gorda: “Sei que o mundo das pessoas normais não é para mim. Continuo a ter o defeito, mas não se vê tanto; tornou-se menos grave. Há momentos em que me parece ter ganhado uma nova vida, como os que passaram por experiências de quase morte, viram o túnel para o outro lado, com a atraente luz branca no final, chamando-os, mas escolheram voltar. Eu também tenho escolhido, e mesmo que já ninguém me exclua, excluo-me eu, à partida. Conheço muito bem os meus limites.”

A gorda entra no elevador, mira-se ao mesmo espelho onde já teve vergonha de se ver reflectida e agora usufrui da sua “beleza madura”: “Por vezes considero que perdi muito tempo, no passado, desgostando de mim, mas reformulo a ideia concluindo que o tempo perdido é tão verdadeiramente vivido na perdição como o que se pensa ter ganho na possessão. E volta o sossego.”

A Gorda é sobre a experiência de ser gorda e é também sobre deixar de ser gorda. É sobre aquilo que se tem e aquilo que se perde. É sobre aquilo que se quer ter e, não podendo, encontrar um substituto. E depois também o substituto tem de se perder. Na segunda metade do livro, Maria Luísa relata uma doença misteriosa, de uma “qualquer morte” que dura uma semana, e da qual regressa “esfomeada, sedenta, descomposta”. Depois disso, vai parar a Alcobaça “no tempo dos marmelos”.

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A roupa que trouxe de Moçambique deixa de lhe servir e não há outra; as mamas não cabem no soutien e não há dinheiro para comprar um novo; as cuecas apertam as virilhas e deixam marcas roxas na pele. Enquanto isso, come marmelada, com ou sem pão, de preferência às escondidas: “Poderia dormir num colchão de marmelada, enfiar-me num poço dela até a vida melhorar e valer a pena acordarem-me da fome insaciável.”

Isabela: “Eu comia para além da fome. Havia uma necessidade grande de encher o estômago. A comida sossegava-me. O meu corpo não precisava de comida, mas eu precisava de comer. O nosso corpo tem uma linguagem e pede-nos coisas. Se calhar era esse o meu remédio. Era uma fuga, um alívio. Uma forma de me encher das coisas que não tinha. A minha adolescência não foi fácil. Foi um grande desenraizamento. Vim para Portugal antes de fazer 13 anos. Quando cheguei, tinha familiares a receberem-me no aeroporto. Nunca os tinha visto e fui para casa deles. Pelo facto de serem nossos familiares não são necessariamente nossos aliados, nossos amigos, nossos protectores.”

Esplendor colonial num apartamento

Maria Luísa, tal como Isabela Figueiredo, nasceu e passou a infância em Moçambique. Tal como a sua autora, veio para Portugal viver com familiares que desconhecia depois da independência. Tal como Isabela, frequentou um colégio interno, em Tomar, viveu na casa de familiares nas Caldas, em Alcobaça e no Feijó e finalmente fixou-se com os pais na Cova da Piedade, em Almada, quando era já uma adolescente com vida de adulta. Os pais enviaram-na para Portugal quando era demasiado cedo e voltaram para ela quando era demasiado tarde.

“Eu não tinha opinião a dar sobre a minha vida”, diz Isabela. “Eram eles que decidiam. Optaram pela minha segurança e pela minha formação académica. Eu compreendi a decisão deles e aceitei, até porque sempre houve em mim um grande desejo de independência e de solidão. Quando eles voltaram, eu também não os queria. Houve um grande afastamento. Ela cresceu muito. Tornou-se uma mulher. Aprendeu a viver sozinha.”

A Gorda está organizado em oito capítulos e cada capítulo corresponde a uma divisão da casa que partilhou com os pais na Cova da Piedade. Usar as divisões da casa como ponto de partida permite-lhe serpentear no espaço e no tempo, em ciclos de ida e volta à adolescência, à vida adulta, à velhice dos pais e depois da sua morte. A sinalização cronológica é feita através do recurso ao contexto histórico: a mãe de Maria Luísa morre depois da renúncia de Bento XVI; a sua vinda para Portugal, sem os pais, acontece com a independência de Moçambique; o pai morre “no ano da queda” das Torres Gémeas.

Há uma passagem em que Maria Luísa se dedica a copiar as rezas da mãe. Apesar de duvidar do seu poder, teme que as suas correcções “possam alterar a fórmula sagrada”. É demasiado céptica para a fé, e, no entanto, sujeita-se aos seus estratagemas, criando a sua própria oração: “Creio em silêncio. Em tudo. Em Deus Pai Todo-Poderoso e no seu único Filho, na Virgem Maria, nos anjos e santos, na remissão dos pecados e na Vida Eterna; nos ninhos de andorinhas repovoados na primavera, na desova dos peixes que galgam o rio, no canto incógnito das baleias, na cópula cega dos cães vadios. E também na flor hipnótica das acácias, no pólen das margaridas, no odor vespertino do alecrim e do rosmaninho; no negrume bravio dos arbustos e dos pinheiros cerrados, onde se acoitam os antigos espíritos errantes; nos cinco pontos cardeais, nos cinco elementos terrenos, na inumerável clarividência divina da Física e da Química e dos ansiolíticos. E acima da mentira mundana, e da malevolência gratuita, creio no amor.”

Humor selvagem

Antes do amor, falemos de ansiolíticos. Quando é abandonada por David, o primeiro namorado, Maria Luísa é proibida pelo médico de sair à rua, por não conseguir distinguir a cor dos semáforos: “O doutor pode escrever-me num papel quando é que se avança e quando é que se para?” Os próximos dez anos são despachados em duas páginas sonâmbulas e telegráficas: “O médico olhou para mim, medicou-me e entrei num limbo de onde demorei a sair. Voltei a sentir-me relativamente acordada em meados dos anos 90.”

Uma das marcas de estilo de Isabela Figueiredo que dá a medida do seu sentido de humor selvagem são os paralelismos sádicos: Maria Luísa sofre um desgosto amoroso e no parágrafo seguinte o seu pai sofre também um “grande desgosto com a derrota de Cavaco Silva nas legislativas”. Outro paralelismo sádico numa só frase: “Matar-me seria um grande desperdício, avaliando o investimento já realizado.” Outro ainda: “O David está com os pais na sua casinha na Arrentela e a mamã pediu-me que descascasse os marmelos.” E de entre dezenas e dezenas deles, só mais um, provavelmente o mais sádico, em formato de diálogo. Na sequência de um aborto, uma médica com cara de menina diz: “Vista-se, enquanto eu chamo o seu marido.” Maria Luísa: “Não tenho marido.” Médica: “Então chamamos quem? Maria Luísa: “Chamem-me um táxi, por favor.”

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As personagens de Isabela não têm auto-estima e não parecem ter vida própria. Há uma força que as comanda e essa força são os outros. Estão submetidas a uma voz de comando que irremediavelmente se encontra fora de cena. Vivem na periferia, em “ambientes em que não tem de se ser nada”, como explica Isabela. Uma vida não vivida, que só se torna vida a partir do momento em que é contada?

“Enquanto vivi em Moçambique, não tive experiência de estar a viver numa colónia. Havia questões humanas e morais com as quais não concordava, em relação à maneira como os negros e as mulheres eram tratadas, mas não conhecia outra realidade. Quando vim para aqui, não vi Almada como subúrbio. Só se tornou um subúrbio quando percebi isso pelos outros. Foi quando fui estudar para Lisboa, quando fui trabalhar para o Diário de Notícias. Era uma discriminação por não estar no sítio certo. Eu não era como os outros que apanhavam o comboio à mesma hora que eu para ir para o Estoril. Eu ia para a outra banda, não tinha a mesma categoria. Era um lugar impuro, desprezível. Quando percebi isso, comecei a identificar-me. Esse lugar era como eu.”

Falemos de Almada: “Acabei os estudos no Colégio Nun’Álvares, em Tomar, e não tinha para onde ir e uma prima afastada da minha mãe dispôs-se a receber-me em sua casa, no Feijó. Os filhos dela são as pessoas com que me dou aqui. Quando os meus pais regressaram, compraram a casa na Cova da Piedade. Quando vim para aqui, gostei. Era um espaço onde era possível viver anonimamente. Era muito grande, havia muita gente, uma grande mistura de cores e eu gosto de caos, não gosto de coisas arranjadinhas, fico logo a pensar quanto é que isso me vai custar.”

A casa da Cova da Piedade é, desde o início do romance, uma casa-fantasma. É também uma casa obesa, dela transborda tudo o que os pais trouxeram da casa da Matola, em Moçambique. Há um filodendro que alastra pelas quatro paredes da sala, um nicho de caladium, troncos do Brasil, vasos de erva-da-fortuna (tudo contrabandeado de Moçambique em bolbo ou estaca, as raízes “envolvidas em algodão húmido, embrulhado em pano, depois em plástico” dentro de latas ou frascos). Dão à casa a aparência tropical de uma estufa húmida.

A opulência colonial da casa na Matola é reduzida ao exílio num apartamento na Cova da Piedade, mas o processo de descolonização ainda vai no início: segue-se uma guerra doméstica entre mãe e filha: uma guerra por espaço vital, que só terminará com a morte dos pais e a concentração das mobílias vindas de África numa só divisão: o quarto Império! É uma gastrectomia imobiliária! Mas nem assim a casa fica esvaziada do seu passado.

Isabel Figueiredo: “Ainda me dói. A minha mãe e o meu pai trouxeram imensas coisas de África e eu tive de me desenvencilhar delas. Imagina alguém que amas muito e que te diz: ‘Toma, estas coisinhas são para ti, guarda isto para sempre.’ E, quando essa pessoa morre, o que mais queres é desfazer-te daquilo. Queres refazer tudo. O quarto Império existiu mesmo. Quando a minha mãe morreu, meti as coisas todas dela num quarto. Não se podia entrar lá. Os móveis ficaram encostados uns aos outros como sardinhas em lata, para que eu pudesse viver no resto da casa. Hoje em dia o quarto Império é onde fica o meu quarto!”

“O que mais me custou foi o sacrifício que a minha mãe fez para trazer aquelas coisas. As humilhações por que passou. Foi sangue, suor e lágrimas. Como é que se tem coragem? Tem de ser. Também tive de deitar fora coisas que foram preciosas para mim. Se calhar, a gordura foi importante para a minha construção como pessoa. Se calhar, foi importante para me proteger. Se calhar, foi a minha almofada. E, no entanto, tive de deitá-la fora para viver.”

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Conto a Isabela Figueiredo que na véspera tive um sonho em que também fazia uma entrevista, e que a entrevistada, Madonna, usava uma máscara para não ser reconhecida. “Isso é muito psicanalítico”, diz. Acrescenta que faz psicanálise de grupo, num grupo só de mulheres: “Fazemos análise umas às outras. Às vezes é muito incómodo, porque elas me interpelam naqueles sítios que prefiro não partilhar. Não sou totalmente honesta. Aquilo é um bocado xamânico. Primeiro incomoda, depois ficamos a pensar, aquilo fica a agir. Quando escrevo, penso que estou a escavar no que está escondido, lá no fundo, e eu preciso de mostrar. Sou mais autêntica. Procuro relacionar-me comigo como gostaria de me relacionar com os outros. A psicanálise de grupo é um trabalho de interacção social, tem que ver com estar em sociedade, que é o que mais detesto. Tenho de fazer um esforço. É uma espécie de fisioterapia, obriga-me a fazer ginástica social. Tento esconder-me um bocado, mas às vezes sou apanhada.”

Brinquemos ao apanha: o que é que distingue Isabela de Maria Luísa? “Essa é a pergunta à qual nunca irei responder. Se estivesse lá inteira, seria o caos. Quero prender o leitor, obrigá-lo a amar-me e sirvo-me de todos os estratagemas. A literatura é o privado e o íntimo, o autêntico, mas posso construir camadas sobre a autobiografia.” Montar uma narrativa, mesmo usando a experiência autobiográfica, não deixa de ser um trabalho ficcional, e Isabela fala de um leitor que numa sessão de apresentação do livro elogiou a sua coragem em revelar um episódio que, diz ela, não foi vivido por si: “Adorei e assumi. É tudo verdade e é tudo ficção. Uso a minha vida para construir outra vida. Estou aqui, este é o meu corpo e o meu corpo está aqui para tudo, amem-me, dêem-me pancada, façam o que quiserem.  Estou aqui para fazer barulho.”

Há um episódio de infância, recordado em Caderno de Memórias Coloniais, em que Isabela esbofeteia uma mulata. A impunidade é tanto mais grave por saber que ela não pode devolver-lhe a agressão. Esse episódio é um grande momento de literatura por concentrar a aprendizagem do colonialismo e do seu exercício de poder. Um outro exercício de poder é nomeado em A Gorda, em que Maria Luísa é visitada de surpresa por David, depois de ele a ter deixado. Deixou-a, mas ainda a deseja e força-a ter sexo até ela desistir: “Deseja o meu desprezível corpo que o envergonha? Use-o, então, e ponha-se a andar.”

“Aquilo que sou faz-se sobre todos os erros”, comenta. “Com todas as vilezas, não apagaria nada. A única coisa que apagaria: um sentimento de culpa e de inferioridade. Eu não me deveria ter ferido com o que os outros pensavam de mim. Mas se apagasse isso nunca teria escrito.”

A Gorda é um cometa. Não um que acabou de passar, mas um que estava há muito tempo escondido, ainda a fumegar e a gerar trepidação na superfície da vida privada. Existe um precedente? Isabela tem uma afinidade com Adília Lopes: “Ela escreve sempre no fio da navalha. Assim como hoje se fala do Fernando Pessoa, daqui a uns anos irá falar-se da Adília Lopes. Fará parte do programa do 12.º ano, no exame nacional. Mas ainda é cedo.” Isabela é professora de Português na Escola Secundária Fernão Mendes Pinto, em Almada, o que só torna mais divertido o efeito de borrasca do seu trabalho na literatura portuguesa. Terá sido por isso que chegou tão tarde? “O que eu queria escrever não tinha lugar na literatura. Nos anos 90 enviei um original a uma grande figura da língua portuguesa que me respondeu a dizer que aquilo não prestava para nada. Se calhar não prestava mesmo. Mas naquilo que lhe enviei estava o gérmen do que queria escrever.” E ter a fama de Madonna, a ponto de se ver na obrigação de sair à rua de máscara? “Agrada-me a ideia de ser lida e de ser amada através da leitura, mas gosto muito do anonimato.”

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