O corpo é a guerra

Com A Gorda, Isabela Figueiredo faz do (seu) corpo a arma, a munição e a própria guerra.

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Nuno Ferreira Santos

Isabela Figueiredo abria e encerrava Caderno de Memórias Coloniais com poemas de Manuel António Pina. E há um poema do autor, Como Se Desenha Uma Casa, que parece um esquecimento deliberado em A Gorda, onde talvez fosse uma sinopse impertinente, na sua exactidão: “Primeiro abre-se a porta/ por dentro sobre a tela imatura onde previamente/ se escreveram palavras antigas: o cão, o jardim impresente,/ a mãe para sempre morta.// (...) Uma casa é as ruínas de uma casa,/ uma coisa ameaçadora à espera de uma palavra;/ desenha-a como quem embala um remorso,/ com algum grau de abstracção e sem um plano rigoroso.” O romance de estreia de Isabela Figueiredo desenha-se como uma casa: “Porta da Entrada”, “Quarto de Solteira”, “Sala de Estar”, “Quarto dos Papás”, “Cozinha”, “Sala de Jantar”, “Casa de Banho”, “Hall”. Cada divisória, entretanto, acarreta uma orientação mínima, porque de escassa capacidade de imposição, quer temática, quer organizativa — isto é, nenhum daqueles segmentos domésticos ditará respostas óbvias. Trata-se, tão-só, de um deflagrador, a faísca que detona a viagem. Do mesmo modo, aquilo a que poderíamos chamar ordenação do território do romance não responde de forma ordeira ao apelo da cronologia, nem ao esquematismo do baloiço analepse-prolepse. A narração lê e relê os acontecimentos dos vários passados da narradora. Volta aos mesmos lugares e ocorrências, mesmo se de ângulos distintos. Para acertar o tom, atinar com a verdade dos factos revisitados, a graduação da realidade, do plausível — disposição já adivinhável na advertência da autora, de tonalidade aristotélica: “Todas as personagens e situações descritas nesta narrativa são mera ficção e pura realidade.” Não se lavra duas vezes o mesmo campo, mesmo quando se repisa tremendamente perto. As próprias frases são reescritas, revistas, glosadas ou repostas em paráfrases fiéis ou revoltadas; no entanto, a passagem do tempo cria um indivíduo que revive o passado diferentemente e que reconstrói sucessivos presentes que são como vagas sobre um areal que se fosse erodindo.

A figura materna, como a casa (mas também os animais, presentes no poema de Pina), desempenham papel preponderante. De tal forma que, quase no final, tudo se exacerba e, numa transição abrupta, corpo e casa se identificam inextricavelmente: “Um corpo tão perfeito, tão imponente, como pude desamá-lo tanto?! Que silêncio! Que abandono! A casa entretém-se escutando as conversas e os pensamentos gravados por vozes diversas na atmosfera.” (p. 283) Motivo pelo qual se afirma: “A casa respira fundo esse desperdício doce e ácido, denso.” (p. 284) E porque já antes se registara: “A sala de jantar é o armazém de artérias, ADN e sinapses que nos ligam e atravessam.” (p. 214) A mãe da narradora, por seu turno, é objecto de algumas das páginas mais empenhadas e de mais avassaladora entrega de todo o livro — “Gosto dela. Não a suporto. Quando morrer, não me resta mais ninguém. Nunca mais morre. Não morras.” (p. 208) Não basta dispor metodicamente (e o método é, aqui, destempero, vertigem, queda) os contrários e deixar-se seduzir pelo enlevo da contradição. Todo este batimento binário é como a sístole e a diástole do romance. Todo o seu sangue parte daquele fulcro carnal e oscilante; tudo o que circula no corpo romanesco é realmente do corpo que emana, e do que, com esse emaranhado de órgãos, se pode conceber como espírito. As descrições do corpo próprio e alheio são do mais cru e do mais conseguido que a literatura portuguesa tem produzido. O que neste livro importa não é a destreza com que se lida com o impropério, o tabu, o interdito social, mas tudo o que a sua escrita consegue fazer com essas matérias-primas — com essa carne crua. Em A Gorda, a palavra obscena serve para emular a rapidez rude da vida, a sua irrepetibilidade; mas é igualmente a outra palavra, a deturpação do código, a revelação dos diversos planos de compreensão: “Em 2004 acabámos por não foder. Isso é que foi pena, mas deves reiterá-lo sem receio, para tua defesa. Íamos fodendo, mas tinhas hora para regressar a casa. Controlaste-te como deve ser. Deve ser duro viver tão preso, mas calculo que haja certo consolo na rotina do cativeiro. Uma pessoa habitua-se e não quer outra coisa.” (p. 174) Porque nem sempre é este o modo de afirmar o corpo. Por vezes, é a exactidão quase científica que descreve os seus actos e gestos. A obscenidade é também a voz do excesso e da superação. Da assunção tão plena quanto possível do corpo.

Até lá, porém, foi preciso começar por perder camadas de si próprio. O processo traumático da perda radical de peso, a que a narradora se submete, é apresentado logo nas primeiras linhas: “Quarenta quilos é muito peso. Foram os que perdi após a gastrectomia: era um segundo corpo que transportava comigo.” (p. 19) E elas são não apenas um mecanismo de (des)estruturação narrativa, nem um modo de lançar as bases do descrédito a que é votada uma cronologia linear. São um diapasão de todo o romance, na medida em que estabelecem uma tonalidade e um padrão que A Gorda mais não fará do que refinar, depurar, intensificar. Sem cessação, sem relaxamento. Houve já palavras de Caderno de Memórias Coloniais que anteciparam essa recusa de depor armas: “O meu corpo foi uma guerra, era uma guerra, comprou todas as guerras.” Também no seu romance de estreia Isabela Figueiredo faz do corpo o núcleo da guerra. E, mais do que isso, ele é a arma, a munição e a própria guerra — mas também o alvo a abater e a exaltar. Ele é tanto fonte de increpação quanto motivo de júbilo e prazer. A narradora mede forças contra inimigos cujos contornos são diversos. Sejam eles os ideais de beleza femininos mais estandardizados, ou a noção forte (sufocante?) de família. Daí que o cotejo seja permanente, e o saldo, penoso: “Não sabia se as mulheres da minha família alguma vez tinham sentido o mesmo que eu, se eram assim imperfeitas.” (p. 99)

A Gorda manipula os géneros, cruzando as potencialidades do discurso memorialístico e romanesco. Não será abusivo encontrar nele uma relação natural com Caderno de Memórias Coloniais. Pela importância da família, pelo tratamento frontal da questão colonial, um mesmo arco temporal, sensivelmente. Até essa liturgia celebrada perante o corpo materno. Se, no Caderno, a autora escrevia “No corpo da minha mãe apenas me interessava o seu peito. (...) Que delícia havia de ser ter autorização para lhe mexer”, em A Gorda, lemos: “Sempre tive a fixação das suas mamas, como se as minhas não me bastassem. (...) Quanto as beijaria!” “O corpo da minha mãe é o grande mistério” (p. 224). O romance de Isabela Figueiredo é uma ficcionalização do registo autobiográfico. Se o autor empírico fica mais ou menos distante da narração e da narradora, poderá ser questão de somenos — ou não. Facto é que a miscigenação dos géneros possibilita uma análise que é guerra sem quartel. O auto-retrato é tortura consciente do sujeito diegético e existencial — “Tenho adolescência, o resto é a vergonha das mamas volumosas, dos pneus da cintura e das coxas grossas.” (p. 220) Uma hipertrofia da consciência que se mescla com o hiperdesenvolvimento corporal e produz resultados de uma pungente autodepreciação cuja franqueza está patente em todo o livro, e não é técnica, nem manobra de diversão — “Eu, mistério de carne insatisfeito. Eu, tempestade sobre as quatro estações.” (p. 177)

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