Vitória de Trump é um choque para quem respeita a solidez das instituições dos EUA

As elites americanas não vão desaparecer e terão um papel na limitação dos danos.

Por volta dos anos trinta do século passado um jornalista francês descreveu os Estados Unidos da América como “ o único país que passou da barbárie à decadência sem ter transitado pela civilização “. Sabemos que essa frase não corresponde à realidade e que se limita a reproduzir um sentimento anti-americano que já naquela altura se manifestava, e ainda hoje prevalece, em largos sectores da sociedade francesa. Os Estados Unidos têm uma longa tradição democrática, consubstancial à sua própria génese nacional, e em vários momentos decisivos da história contemporânea enfrentaram com sucesso perigosas ameaças de índole totalitária. Como todas as democracias comporta uma dose de pluralismo ideológico, político e social que implica a rejeição de uma visão monista do regime político norte-americano. Um autor como Walter Russell Meade distingue mesmo quatro sensibilidades que terão marcado a história política dos Estados Unidos associando-as à personalidade de quatro dos seus mais importantes Presidentes: Thomas Jefferson, Alexander Hamilton, Andrew Jackson e Woodrow Wilson. É também conhecida a importância de uma certa tradição populista - conceito aqui usado sem qualquer valoração axiológica - na história americana, tradição essa muito ligada a um discurso onde o elemento democrático subjugava a componente liberal, quer no plano político, quer no plano cultural, e até mesmo económico.

A vitória ontem alcançada por Donald Trump devendo ser lida neste pano de fundo histórico bastante complexo não deixa de constituir um enorme choque para todos quantos em todo o mundo aprenderam a respeitar a solidez das instituições norte-americanas. Trump é de tal modo boçal, vulgar e patético que um cronista do El País não hesitava há alguns dias em dizer que, à sua beira, o próprio Berlusconi possuía a solenidade de Charles de Gaulle, a inteligência de Winston Churchill, a sagacidade de Nelson Mandela e o tacto da rainha de Inglaterra.

Ao longo dos últimos anos Trump foi ocupando uma parte do espaço público norte-americano beneficiando das características peculiares deste último propensas à valorização da sua personalidade histriónica e narcisista. Não se lhe conhece um pensamento político minimamente elaborado em relação ao que quer que seja, nem na política interna nem na componente internacional. A sua campanha ficou assinalada por uma sucessão de insultos, de declarações a raiar o paranóico, de considerações xenófobas, racistas e sexistas. A dado passo, dando provas de sordidez moral, admitiu pôr em causa os resultados eleitorais caso fosse derrotado. O seu discurso, em certos momentos, aflorou mesmo uma linguagem de natureza tipicamente proto-fascista. Não caiamos na tentação de desvalorizar as óbvias insuficiências políticas, intelectuais e éticas deste vendedor de ilusões sem categoria.

Se nada de bom há a esperar do Presidente eleito resta-nos confiar na força das seculares instituições democrático-liberais norte-americanas. Ao seu isolacionismo político e económico baseado na exaltação de um nativismo perigoso poderá e deverá opor-se um Congresso onde pululam Senadores e membros da Câmara dos Representantes imbuídos de um pensamento político radicalmente contrário. Entre os eleitos pelo Partido Republicano há muitos defensores da necessidade de celebração de tratados comerciais internacionais e de uma presença activa do seu país na cena política internacional. Na altura própria farão, decerto, ouvir a sua voz. O Partido Democrata, saindo derrotado, não deixará de exercer uma enorme influência no debate político procurando, sobretudo nesta fase, salvaguardar a preciosa herança da Administração Obama. As elites americanas, momentaneamente tão violentamente atacadas à esquerda e à direita, não vão desaparecer e poderão, corrigindo alguns erros ultimamente cometidos, ter um papel importante na limitação dos danos eventualmente provocados pela Presidência.

Nas últimas horas surgiram múltiplas teorias para explicar o improvável acontecimento ocorrido. Para uma parte substancial da direita a vitória de Trump assenta numa reacção da maioria da população branca que se sentiria ameaçada pelo avanço das comunidades afro-americanas e latinas. Estaríamos, assim, perante uma motivação assente num princípio de diferenciação étnica que, no limite, remete para uma atitude puramente racista. Para uma certa esquerda extremista, que infelizmente no nosso país começa a integrar alguns sectores ainda relativamente marginais do próprio PS, tudo radica em factores exclusivamente económicos que têm que ver com o fenómeno da globalização.

A explicação parece-me bem mais complexa e não excluindo os factores atrás referidos vai muito para além deles. Têm que ver, entre outras coisas, com a dissolução de valores cívicos tradicionais, com a hegemonia adquirida pelas redes sociais na formatação do debate no espaço público, com uma certa infantilidade com que lidamos com a revolução tecnológica digital e com a redução da espessura do indivíduo à sua manifestação estritamente narcísica. Tudo isto apela a respostas simplistas e a soluções de liderança aparentemente salvíficas e não raras vezes dotadas de um certo carisma circense. O que tornou a noite de ontem especialmente obscena foi o facto dos americanos se terem despedido desta forma de um dos maiores Presidentes da sua História e da mais importante figura política mundial do início do século XXI.

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