Sim, eles podem (mas não sabiam)

Não se sabe o que fará Trump, mas sabemos que o mundo de amanhã será mais egoísta, mais dado ao isolacionismo e humanamente menos tolerante.

Este ano está a ser verdadeiramente espantoso. Até Junho, quando se dizia por aí que o Reino Unido ia sair da União Europeia, a resposta mais usual era: “O quê? Impossível. Nunca sairá.” Mas a verdade é que saiu (ou vai saindo). Quando líamos, nas notícias, que um assassino confesso podia ser democraticamente eleito presidente de um país, ninguém queria acreditar. “Pode lá ser! Onde é que já se viu tal coisa?” Mas vimos, e no planeta Terra: nas Filipinas, Rodrigo Duterte. Depois veio a anedota máxima: Donald Trump, presidente dos Estados Unidos. “Estão a brincar, não estão? Isto é para um programa de Apanhados?” Não, não era, como vimos. Andamos a troçar de coisas demasiado sérias. E não perguntem se Marine Le Pen chegará ao Eliseu, que por este andar nada é impossível.

Mas todos pensavam que era, talvez até os próprios. Nigel Farage, o líder do antieuropeu UKIP, disse, eufórico, depois da votação que retirou o Reino Unido da União Europeia: “A UE está a falhar, a UE está a morrer”; mas parecia surpreendido com o facto de ter saído vencedor da sua cruzada. E Trump, no discurso da vitória, falou em “reconstruir” os Estados Unidos, como se estes tivessem acabado de emergir das cinzas de uma guerra; mas da forma como falou, até pareceu que não estava à espera de vencer. A sua entrada em palco fez-se, pateticamente, ao som da música do filme O Dia da Independência (sim, aquele que põe os americanos a enfrentar e derrotar extraterrestres) e à saída soaram os Rolling Stones de You can’t always get what you want (os Stones denunciaram o abuso, mas ninguém os ouviu). O título parece mais adequado à derrota de Hillary do que à vitória de Trump. Mas é preciso ouvir a canção: “Nem sempre consegues o que queres/ Mas se fores tentando/ Verás que consegues o que precisas.” Quem viu o filme Os Amigos de Alex, onde Lawrence Kasdan retratou, de forma simpaticamente redentora, o declínio da geração dos “sixties”, recordará que You can’t always get what you want era a canção tocada logo no início, no funeral de Alex – que se suicidara, para espanto de todos. Houve um choque, o dessa morte. E daí que o filme se chamasse, na versão original americana, The Big Chill, ou o grande calafrio.

Agora o calafrio é outro e veio de um voto zangado com o sistema, os seus truques, as suas hábeis mentiras, as suas teias de interesses, o seu aparentemente intocável poder. O pior é que também já conhecemos a manha de muitos “salvadores” e é tudo menos recomendável. Não se sabe o que fará Trump, mas sabemos que o mundo de amanhã será mais egoísta, mais dado ao isolacionismo e humanamente menos tolerante. Populistas de esquerda e de direita virão, como abutres, debicar o corpo moribundo de um sistema que anda a suicidar-se lentamente, na ilusão de que esse suicídio é uma festa ou um imperativo de sobrevivência.

No ano 2000, no início deste século de surpresas (em grande parte más), os criadores dos Simpsons puseram Donald Trump num dos seus episódios como ex-presidente dos EUA. Passava-se no futuro, Lisa Simpson era eleita presidente e queixava-se da grande dívida que herdara da gestão Trump na Casa Branca. Porquê Trump? Porque eles queriam alguém inverosímil e absurdo como presidente. Como se vê, acertaram. Agora só nos resta esperar pela eleição de Lisa Simpson. Há-de ser mais humana, mais culta e bem mais cerebral.

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