O que é que aconteceu na América?

A classe média está, há cerca de 40 anos, a perder poder de compra, mantendo o nível de vida com recurso a crédito.A classe média baixa perdeu os seus empregos industriais para mão de obra mais barata dos países em desenvolvimento.

As eleições presidenciais americanas mais controversas das últimas décadas tiveram o seu desfecho  com a vitória expressiva de Donald Trump. É demasiado cedo para sabermos o impacto destes acontecimentos, mas há uma questão que deve ser colocada: como é que os Estados Unidos, os próprios construtores do mundo ocidental como o conhecemos, elegeram um populista, sem qualquer experiência política, que anuncia querer pôr em prática políticas xenófobas e protecionistas e uma política externa que, se for cumprida à letra, acabará com a ordem internacional liberal?

É preciso olhar com rigor para a sociedade americana, nomeadamente para três ordens de factores: económicos, políticos e sociais.

Desde a crise de 2008 o país despertou para uma realidade que já não tinha nada de novo: a classe média está, há cerca de 40 anos, a perder poder de compra, mantendo o nível de vida com recurso a crédito. A classe média baixa perdeu os seus empregos industriais para mão de obra mais barata dos países em desenvolvimento, e os que conseguiram voltar ao mercado de trabalho viram a sua qualidade de vida drasticamente reduzida por salários mais baixos. A famosa rust belt  foi o rastilho para que se compreendesse que a riqueza estava acumulada numa pequeníssima percentagem da população, e que o acesso à mobilidade social e ao sonho americano era uma realidade cada vez mais distante.

Por volta de 2011, a crise económica em si estava quase ultrapassada no que respeitava aos números do consumo. Mas o discurso sobre as desigualdades e o enfraquecimento da classe média tinha vindo para ficar. Os norte-americanos apercebiam-se que a globalização, o mantra que os tinha embalado nos anos 1990, tinha ganhadores e perdedores, e que uma larga fatia da população se encontrava entre os últimos.

Do ponto de vista político também já era visível uma profunda crise no Partido Republicano. Os três sintomas eram, primeiro, as derrotas consecutivas das candidaturas à presidência de John McCain e Mitt Romney, representantes das alas mais tradicionais do partido. O segunda sintoma era a emergência do Tea Party, uma fação radicalizada com uma agenda nacionalista e isolacionista, que ganhava cada vez mais adeptos. O terceiro aspecto, menos óbvio, era uma profunda aridez de novas ideias entre os conservadores moderados, incapazes de fazer face ao discurso mais radical dentro do seu próprio partido.

O terceiro factor é de natureza social: o tecido étnico dos Estados Unidos mudou profundamente nas últimas décadas. Samuel Huntington previu um “choque de civilizações interno” no seu livro Who Are We?, de 2004, mas a força do politicamente correcto – muito presente nos Estados Unidos devido a questões mal resolvidas na sociedade americana relacionadas com a tão recente segregação racial – varria-as para debaixo do tapete. E, como se sabe, as sociedades que não enfrentam os seus próprios fantasmas correm o risco da criação de conflitos sociais latentes como o que se vive na América hoje. O hispânico, o afro-americano, o imigrante é o bode expiatório dos vencidos da globalização. Tal como o estblishment, visto como o facilitador dos ganhos de Wall Street, e incapaz de resolver os problemas do cidadão comum.  

No seu conjunto estas três crises explicam a vitória de Donald Trump. O seu discurso irrealista espelha os medos gerados na sociedade americana e o seu tom simplista e assertivo encorajou muitos a pôr nas urnas ou um voto de protesto (contra o establishment) ou de wishful thinking (a esperança em soluções simples e rápidas para problemas complexos). Como todos os populistas Trump explorou os medos e prometeu mundos e fundos (muitos impossíveis) para que a América seja “grande outra vez”. E os eleitores preferiram essa via.

   

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