O poder e o medo
O choque provocado por Trump não pode ser transformado em medo. O catastrofismo incita à passividade.
1. A eleição de Donald Trump foi um choque, “um mundo que se desmorona debaixo dos nossos olhos” (a expressão é do embaixador francês em Washington), com a agravante de ter ocorrido na mais poderosa nação do planeta. O choque deixa para trás a obscenidade dos apelos racistas, a justificação da tortura, a impostura e a indecência. Tudo isto ficou registado, nos media e na memória.
Mas o choque foi multiplicado por adversários de Trump que traçaram cenários catastróficos sobre os primeiros “cem dias”: uma guerra comercial e uma escalada militar com a China, o recomeço da tortura e o relançamento do programa nuclear iraniano, a perseguição policial a Hillary Clinton ou o espectáculo do “comandante em chefe” a ser processado por mulheres que o acusariam de agressão sexual (Washington Post).
No “dia seguinte”, o debate mudou de registo. Passou a incidir nos efeitos da eleição de um magnata do imobiliário, sem qualquer experiência política e de bizarra personalidade, para a Presidência dos Estados Unidos. Resumia ontem o editorial do New York Times: “Trump é o mais impreparado Presidente eleito da História moderna.”
O primeiro ponto que deve ser levantado é a sua relação com as instituições e as regras democráticas. “Excluindo uma fenomenal mudança de personalidade, a vitória de Trump aparece como um desafio ao modelo democrático ocidental”, escrevia também ontem, em editorial, o Financial Times. Durante a campanha ele desafiou a separação dos poderes ou a liberdade de imprensa.
Conhecido o resultado das eleições, surgiu um dado inesperado: Trump vai acumular um poder imenso. Será o chefe indiscutido do Partido Republicano. Controlará as maiorias na Câmara dos Representantes e no Senado. O seu estilo autoritário e o odor da vitória não deixam dúvidas sobre quem vai comandar. Será ainda Trump a designar os próximos juízes do Supremo Tribunal, que rege os equilíbrios dos poderes. Trump estará na posição inversa de Obama, bloqueado pela maioria republicana do Congresso, primeiro na Câmara dos Representantes, depois em todo o Congresso.
Ross Douthat, do New York Times, sublinha a dimensão e o risco da ruptura. “O que acontecer a seguir promete (e ameaça) fazer história como nada antes na América — nem sequer o trauma do 11 de Setembro ou a eleição do primeiro Presidente negro — desde o fim da Guerra Fria há 30 anos, ou desde as crises dos anos 1960 e 70 e mais fundamentalmente do que estas.”
2. “Há vida depois de Trump?” — interrogava-se há dias um colunista americano. A política não morreu, tal como a História sobreviveu ao livro de Fukuyama. O que ignoramos são as novas regras do jogo e a repercussão do choque a médio prazo, dentro e fora da América.
Trump ganhou, porque “captou o espírito do tempo” e cavalgou a insurreição dos eleitores contra as classes dirigentes por quem se sentiam abandonados. E que factor cimentou as várias vertentes da insurreição populista, da “ansiedade económica” às crises de identidade, da islamofobia à recusa dos imigrantes e da globalização? Tem um nome simples: medo.
Os medos desafiam a lógica e os próprios interesses. É acima de tudo um medo da mudança e do desaparecimento dum “antigo mundo”. Medo da erosão dos valores tradicionais. Medo do futuro. As classes dirigentes americanas (para não falar nas europeias) não souberam falar aos “perdedores” da globalização e das revoluções tecnológicas.
O choque provocado por Trump não pode ser transformado em medo, nem entendido num registo catastrófico, que incita à passividade. Os 240 anos da democracia americana não desaparecerão de um dia para o outro. Há outra América para lá de Trump. Na Europa, o catastrofismo seria a mais perigosa forma de acelerar a erosão da democracia e de estimular os seus próprios populismos.
A desintoxicação dos medos é uma prioridade política — mas difícil de aprender.